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Nó na Garganta

- não trouxe suas palavras. onde estive com a cabeça, meu deus?! o guarda-roupa revirado, suas gavetas escancaradas transbordando cartas de ex-namoradas, fotos antigas – vencidas –, calhamaços de memória amarelada... pousada sobre tudo, a frase que te devo. fiado, não nego. e minha procrastinação é famosa! vêm os anjos, vêm os sonhos lembrarem-me a dívida que tenho contigo. comigo. inquietude que me toma como par! sou ímpar enquanto não deixá-la à par!

Hortência

Mais um desabrochar. E as pétalas se mantém em suas cores intensas e, presumo, com sua essência tão característica. E, já sabes, sinto falta do campo de flores; desse jardim que é o mundo.
Sem tempo para ser estraño .

Vende-se

Se não fosse tão complicado ver um sorriso surgir em teus lábios... Mas é impossível para mim olhar dentro de teus olhos. E como eu poderia sustentar essa minha cara simpática se a visse com olhos sérios? E o que há de sério para ver em ti?! Pois venda-me, amor. Que num mundo escuro é mais fácil enxergar tuas verdades. Que teus motivos brotam como flores do solo e te justificam incontestavelmente. Pois, afinal, que fato pode ser tão definitivo para não ser visto com outros olhos?

Privado

E o sorriso se fez propriedade e eu fui feito proprietário.

Insumo

Irrastreável, Incomunicável, Inumerado: às vezes sumo. Impaciente, Impetuoso, Instável: mudo meu rumo. Indescritível, Inefável, Indeterminado: me resumo. E me auto-consumo.

Espetáculo de variedades

Agarrava-se à pilastra indo contra a correnteza. Eu, encostado na parede, recompondo-me, não conseguia desgrudar meus olhos dos dela. Parecia a gravidade a nos atrair, cupidos a nos empurrar, ou mesmo a própria discórdia: que ela estava acompanhada. Olhos que se procuram mutuamente, bocas que se completam feito peças de quebra-cabeça perdidas na sala extensa, talvez imãs separados pelas mãos de uma criança e talvez esta fosse o destino. Mantivemo-nos distantes. A troca de palavras foi inevitável: precisávamos testar-nos; precisávamos provarmo-nos. Mas talvez o gosto fosse insaciável, como foi. E na manhã seguinte escrevo estes versos. Com uma vaga esperança das mãos do destino ter nos soltados por aí, rua afora. Quem sabe?

Universum

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Dispor-se à vida e deixar-se ser conduzido. Que veleje em brisas e brisas e perca-se no horizonte. E que possua limites, para que possa cruzá-los sem que se perceba E só depois a exclamação despreocupada; o misto de surpresa e reticências: -... ah!

Maré

E então, que fazem abertas estas aspas? Muito já foi dito sobre solidão, mas estes escritos nunca foram concedidos aos teus olhos. Quiçá nunca serão verdadeiramente teus. Que os tem agora, mas não tens a mim. E só o que tenho são estas mãos tremulas que rabiscam palavras ilegíveis e um sorriso amarelo camuflado em meio a um mar de gente. Sobe, desce maré; passo despercebido, sem adjetivo algum. E então, para que servem estas aspas que tens? Fecha-as agora!

Pulo

E nosso encontro deu-se em um pulo; um susto. A vida acontece nas lacunas da rotina, os amores são fruto do inesperado. Mas afinal, ainda dá para se prever o itinerário do destino e as voltas que a vida há de dar. Quem sabe eu não sou só um nó? Que faltou um “s” para sermos nós.

Esclarecimentos Posteriores

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Descrente do futuro, como sou, esta não foi uma revelação ou qualquer espécie de aposta no destino. Este foi um desafio proposto aos demais jogadores; foi o anúncio da natureza humana – perversa e cruel – que se apresenta tão egoísta, mas que se mostra tão mais inconseqüente do que racional; é a dúvida sobre a minha compreensão – esse meu ciúmes de mim mesmo – que faz-me descartar a hipótese de ser decifrado por apenas um. por Franco- Sobre Love Will Tear Us Apart .

Sonhante

Acho-me nessas despedidas rápidas de expectativas. Encontro-me exatamente nestes momentos em que o sonho se esvai e a realidade nos envolve. Tenho-me lá em minhas montanhas-russas; em meus “desumores”, desavenças, discussões com o destino. Procuro-me no sonhar, encontro-me no momento. E de tanto cálculo que fiz, no fim, só me restou o tempo perdido: espontâneo. Que os planos, mirabolantes que sejam, caem à terra e as impressões se imprimem na temperatura do presente. Nunca me adiantaria ser frio: rendo-me ao espetáculo e derreto-me com a performance. Sou mesmo... inconstante.

À mostra

E se eu sou tão fechado assim, o que são, então, essas frases aqui dispostas, abertas para o mundo? Ah, sim, agora eu me lembro: exposição de fatos.

Exílio

Seu coração precipitou-se ao passar pela porta. Já não era o bêbado alegre do bar. Depois de horas na companhia das intermináveis doses de tudo o que tinha direito, conseguira descontrair-se e ensaiar um sorriso para os passantes que o encaravam com uma mistura de piedade e desprezo. Não adiantava enganar-se, estava murcho: no lugar do sorriso sustentava um peso na face, e no lugar do copo, as mãos vazias, que ilustravam o que ele pensava da vida àquela altura –  e era um homem de meia-idade ainda. Apoiou-se no umbral e encarou o cômodo à sua frente com uma mão sobre o estômago. Talvez o álcool não tivesse caído bem ou talvez ele já estivesse sóbrio o suficiente para encarar sua realidade. Havia alguns dias ele prorrogava o destino sabendo sê-lo inevitável. A angústia que havia se apoderado dele trazia consigo o silêncio perturbador. Já não era capaz de pronunciar palavras e sentia-se um vegetal. Tinha largado o emprego, as contas venceram e desfez-se do celular estridente arreme

Manifesto

Solúvel, no entanto íntegro: sou substância volátil. Sou o universo em flor, a se abrir e abrir e abrir - sou o abismo sem fundo. Veneno aos que se embriagam do comum e levitam, e se cercam, se têm seguros: sou a insegurança. A peça de teatro que nunca se repete, a peça que nunca sai de cartaz. Sou o improviso e o sorriso da plateia, provocado. Sou o manifesto: espontâneo da boca de um. Um, qualquer. Mas se sou linhas, versos, tenho lá minhas partes ilegíveis. Se chego a ser melodia, se chego a tocar seus ouvidos, sou um sopro mais demorado... Sou as reticências que seus olhos exclamam, o silêncio que permanece quando tudo mais se encerra.

Releituras

Ando revirando o passado; revirando os olhos. Ando por aí, pelas ruas, a me desculpar com o vento que passou por mim e nem o cumprimentei. Ando por aí, esses dias, dando bola demais aos vizinhos: acenando pra quem não me interessa, dando ouvidos em um excesso de simpatia... Ando com tempo demais. E hora que me falta, relógio que nunca se dispôs a fazer reverências, hoje me espera atravessar a avenida com os ponteiros a me acompanhar gentilmente. Dou esmola até. Não dinheiro que nunca tive, mas sorrio e digo um “boa tarde” que é pra ver se a sorte consegue acompanhar mesmo meu passo. E não é bom-humor por que este eu só reconheço quando já não estou são, mas é que, nas páginas amarelas a nostalgia se faz tão viva que, definitivamente, alegria é o que eu não tenho – mais.

Néctar

As estações estão prestes a mudar. Antes eu pensava ser uma troca, sabe? Uma chegava e a outra consentia em se retirar e estava tudo certo. Do inverno íamos à primavera e tudo ficava florido: as crianças faziam em seus desenhos sóis sorridentes, as pessoas se empolgavam em aposentarem no fundo do armário seus casacos pesados e até as abelhas e borboletas se preparavam para voar de flor em flor em busca de seu néctar. Eu acabei descobrindo que não é bem assim. O sol se impõe à força e atropela as estações. Parece-me até que o verão pretende pular a primavera, furar fila na cara-de-pau e irradiar o calor que lhe é tão característico. É como se o inverno tivesse sido encurralado ou andasse em uma ponte, dessas de navio pirata, com uma arma apontada para suas costas que o fizesse andar passo a passo em direção ao oceano. O abismo abriga estas estações vencidas, todo este passado que vem à tona. E é muito estranho falar de passado... nesta carta atemporal. Passado não temos. Talvez alguns r

Fim de Festa

E o que nos resta? A fome. Que só ela guia nossos corpos circundados por trapos imundos de volta aos nossos lares em passos cambaleantes acompanhados de desejos ainda não saciados. Desejos nunca saciados, insaciáveis. E amanhã eu vou acordar com o gosto de álcool na boca meio arrependido por não me lembrar de todos os fatos, mas por enquanto, em minha semi-consciência, eu ainda quero mais.

Elucidação

O susto. Três toques repentinos na porta de madeira. E a campainha reforça: A loucura me visita. Trouxe-nos chá. Muito agradável, por sinal. E ao contrário do tempo que evapora diante do conforto, nossa tarde estende-se, iluminada pelo sol. Gosto das sombras da sala de estar. Elogio-as. Estamos a sós. Aí já são cinco, e meia, e seis, e já escureceu. Não convidamos palavras, mas eu falo sozinho. Não convidamos a noite, mas as estrelas nos espiam pelas frestas da persiana mal fechada. Não convidamos a luz e permanecemos no escuro. Não convidamos a garota: ela chora no andar de cima. Ou no quarto ao lado, não sei bem... Lembranças se exaltam em cada verso da música do rádio... Mas neste momento já não há estações musicais e, bem, não há do que se lembrar. Por que a loucura é íntima e temos um pacto: Presente perpétuo. Mas pobre de mim que numa distração qualquer pus-me a desenhá-la.

Sonhos

Logo eu que vivo com a cabeça tão alta, nas nuvens, tenho estes pés tão firmes no chão.

Apoteose

ao som de Spacemen 3 Começa escuro. Eu andava apreensivo, sem muita paciência para ver filmes inteiros. Andei deixando a cama pela madrugada e o sono pela metade; os cafés-da-manhã intactos e os da tarde mordiscados levemente; as piadas no silêncio, completo. Os pensamentos longe disso, num monólogo insistente. Andei abandonando ideias na lixeira do meu cubículo, dando voltas mais longas com meu cachorro como pretexto para a ausência, esquecendo-me de carregar o celular; esquecendo de carregá-lo comigo. Um amigo havia indicado. Amigo? Estive a perambular pelas noites até eventualmente deparar-me com um alguém que parecia tão ou mais perdido do que eu. Acho que isto é motivo para considerá-lo um amigo, faz com que a gente se sinta melhor, ainda que o interesse fosse tão pouco. Nesses casos, quando se foge de casa para tomar um ar, opta-se por respirar, não existe nenhuma semelhança entre você e qualquer coisa ao seu redor; não há ligações com o mundo exterior! Nesses cas

Oração à lua

Oração à lua Ó lua, dar-te-ei fermento para que cresças rapidamente. Que pule de fases, torne-te plena, cheia, como estas pupilas que ocupam todos meus olhos. Que teu despertar cega-me, ofusca esta visão embriagada, faz-me ansioso, homem de cinco sentidos, incompleto. Lua, dar-te-ei fermento pela luz. Que de perdido vou a crente na imagem de São Jorge. Que sinto-me capaz quando reconheço o dragão ajoelhado. Dar-te-ei fermento, lua, para estar iluminado, para ser gênio. Distancia-me, pois, de confrarias, mais ávidas do que herméticas. Faz-me, portanto, detentor do conhecimento, confidencia-me segredos, ergue-me diante aos demais, “homens de bem”. Fermento, pelo instinto. Que me põe frente a frente à minha sombra como nem o espelho. Coloca-me diante do lobo, que tanto temo. E no entanto, lua, lobo sou eu. Sou eu quem uivo noite afora. Por ti.

De verão

Tinha uma flor nos cabelos e as roupas imundas. Era verão e isto justificava tudo: o vestido leve, a alegria presente no cotidiano, as brincadeiras e a correria das crianças. As nuvens se apresentavam como zoológico e a grama como berço para a imaginação: que se deitava ali e passava as tardes a observar o céu e sentir a brisa apalpar-lhe o corpo. E se perdia em pensamentos que quase se esquecia de olhar de hora em hora os meninos: serenos em seu mundo à parte. O pé às vezes molhado pelas fontes que espirravam água repentinamente ou pelo bebedouro que era quase como uma atração turística. As mãos sujas, assim como as roupas, tudo bem, isso já era rotina. Mas a flor não combinava. Não adiantava, a flor era muito radical! Os cabelos que a sustentava eram rebeldes, se lançavam ao vento junto ao vestido. E os olhos se fechavam numa expressão quase sublime, mas a flor permanecia intacta. Talvez fosse medo. É, medo de ser só mais um amor de verão, medo da chegada do outono. E se a flor caíss

Reflexões Tardias

Tenho me tornado cada vez mais livre e, no entanto, menos libertário. Eu quero voltar atrás. Só consigo perceber agora que o câncer que tanto te aflige, este que te faz tão mal, não é contagioso, mas, pelo contrário, sempre esteve presente em mim. Só consigo perceber agora que tua presença era o alívio e que agora ele cresce solto, em ritmo acelerado, e eu tenho me transformado mais em você do que você própria. Eu, que antes renegava analistas por me gabar da auto-compreensão, agora os suplico em cada cidadão comum que me cerca com algum tempo disponível. Sorvo seus poucos segundos e me embriago de palavras vazias buscando apenas a mim mesmo. A medida de que me liberto de pudores, regras e pensamentos limitantes me vejo cada vez mais abandonando a ética e um senso social o qual eu acreditava possuir. Vejo-me um híbrido a optar por sua ruína: a escolher o selvagem, o lobo!, e deixá-lo solto na floresta; a ignorar a consistência dessas árvores cinzas cimentadas. Perco-me cada vez mais e

Dois minutos de conversa

uns dois minutos de conversa viriam a calhar. claro que para uma conversa de esquina está muito bom: um assunto rápido, comum, público. mas se as palavras se emendam e vão puxando outros temas, tantos que nem cabem no imaginário por serem espontâneos demais, daí eu sugeriria uma cafeteria onde as almas se acalmam. penso se tratarem de alívios e simplesmente isso. Que garçons são charmosos a carregarem uma xícaras de café e as cadeiras são poltronas em um fim de tarde. E, ah! qualquer papo-furado é poesia por aquelas bandas. E nos chamam de poetas quando escolhemos nossa mesa...

De mãos vazias

Recebeu-me em seu quarto vazio no meio da noite. Vivi de visitas inesperadas ao longo desses últimos meses. E ainda que, agora, de volta ao lar – devo acrescentar, por tempo indefinido – minha cama me estranha e se murcha ao receber meu corpo encolhido na madrugada gelada. Sussurrou-me algumas palavras confortantes entrecortadas pela boca apoiada nos joelhos. Sentava-se no encontro das paredes, ao lado do espelho, mas o evitava com certo repulso. A cabeça baixa já não era novidade e as histórias que um dia se fizeram de sonífero agora, todas esquecidas. Resolveu se desfazer delas por completo. E ali estavam, nas páginas amareladas, rasgadas no chão do quarto. Quase nem fico. Que o passado bate forte e se perco o controle sou eu o dominado. Mas o tenho, meu anfitrião, de volta à origem, rendido, como um garotinho em plena prenda no canto da sala de aula. Que devaneios o devoram e o tempo o humilha, por castigo ou simples prazer. Apesar de aflito, mantenho-me calado: sei que o Deus do Te

João

Tens em teu cabelo encaracolado o cheiro da embriaguez e faz parecê-la amável a quem escuta as palavras que ecoam de seus lábios. Tens em tua voz o timbre da segurança e atormenta tuas amantes quando anuncia suas descobertas – que sabem não ser tão dono assim de si. Tens em teu olhar o brilho de um menino que tudo pode. E só eu mesmo para saber o quanto podes. Que és livre e belo, mais que qualquer outro, para poder se lançar ao mundo sem pés atrás ou planos B. Tens em teus passos o mundo a desmoronar; e tudo depende do seu humor. Que às vezes é você quem causa o estrago, e se orgulha e sorri com a sinceridade que nunca presenciei em ninguém mais. Mas às vezes, quando dias cinzas, encara o abismo e se lança na fuga. E compensa em horas intermináveis passadas na sua, nossa, realidade paralela. Aos olhos de uns a inexistência. A outros, mais sensíveis, a insanidade. Que amar assim nunca foi compreensível a ninguém. No entanto, dentro de uma casa, pintamos as paredes de verde e espreitam

Devaneios Tempranos

Quando saio de casa levo comigo apenas o dinheiro do ônibus de volta. Sei bem sobre retornos: fatigantes. Há o alívio, claro, de se ter para si só, de volta à sua origem, sem competições com as vozes circundantes ou preocupações com as frivolidades alheias, porém o desânimo. Que não fui feito para isso não! De saber aonde é o ponto final, sem surpresas e que se tudo correr bem, se ao meu lado estiver o que chamam de sorte , toda, toda do mundo, será, então, apenas mais um regresso incólume.

Rodeios

O aborto da voz, O nó na garganta, A queda da caneta, O risco, a rasura. A adoção de reticências... Aos impetuosos o rasgar do papel, calar-se de súbito. Aos tímidos o enrubescer; Aos colecionadores mais uma peça, causo! Quantas cartas já não chegaram aos seus destinatários?
Releio as palavras, agrupo meus deslizes, passo tudo a limpo. Preocupo-me com a legibilidade: perco minutos analisando-a com olhares de estrangeiro ... “Já posso trancá-la na gaveta.”

Habitual

Eu sou suas unhas ruídas e o arrependimento ao olhar o esmalte colorido. Sou toda a ansiedade pelo dia de amanhã, a indecisão da roupa e o relógio implacável. Sou essas pupilas cheias, transbordantes, que querem se derramar sobre ponteiros para que se deitem mais rápido. Sou a última, penúltima, antepenúltima... Sou as páginas do seu caderno rabiscado na madrugada. Sou bocejo e a incapacidade de dormir. Sou insônia e serei olheiras. Sou eu quem atende o telefone às quatro, quatro e meia da manhã... Do outro lado da linha só há o respirar. O velho timbre do desespero.

Da sala ao lado

Estive tão distraído que nem vi quando ela sentou-se ao meu lado. Puxou um fone da minha orelha e colocou em seu ouvido, sem a menor cerimônia. E acrescentou ao seu ato: “Eu sempre quis saber o que você escuta, sempre quis ouvir sua voz.” Não tive uma palavra para saciá-la, então continuou: “Você... acredita em destino?” “Não.” “Por quê?” “Seria muita pretensão acreditar em destino depois de ter forjado tantos acasos.” “E sonhos?” “Se eu acredito em sonhos? Sim. Que eles se realizam, talvez. Mas logo eu, tão cético, estou tendo meus conceitos desconstruídos neste exato momento...” Foi quando ela me beliscou e sussurrou em minha orelha nua: “Eu sou real.” E depois de dito isso ela olhou para frente, parecendo prestar atenção na palestra que ocorria em uma dimensão completamente distinta da nossa. Eu estava tão distante do mundo que tive de ser censurado por um olhar que ela me lançou para que eu voltasse ao auditório. Uma multidão de alunos tentava assistir a p

Borrão

Foge do mundo. Mas volta arrependido, cabisbaixo e sem palavras de consolo. -Mas não trouxe nenhuma?! Não vistes tanta coisa?! E segue com as bochechas rosadas e com a voz lhe escapando. Segue por seguir porque não sabe aonde ir. Memória fraca. Talvez tudo gravado, mas, sendo assim, então, era péssimo em transpor! E transpirava cenas de filmes envelhecidos. Filmes mudos, música clássica! Ah! E suava a realidade para fora de si e fazia a multidão confundi-lo com uma ilusão. Provocava o público só de subir no palco! – trabalhava, para deleito geral, nas vinte quatro horas que tinha o dia e nos sete dias que tinha a semana. Afinal, era só uma atração. Uma atração à parte, mas não deixava de compor o espetáculo. E vivia a questionar a ironia de lágrimas escorrerem pela face de um palhaço. Devia parar: estava borrando a maquiagem.

Liberdade Condicional

Acordou ainda exausto, de boca seca, dor de cabeça e sem saber o que pensar. Cheirou a camisa, desabotoou-a e livrou-se dela. Depois dos sapatos, que já o incomodavam. Ele sempre ficava intrigado quando dormia completamente desconfortável como daquela forma, pois normalmente o sono lhe faltava e era um suplício fechar os olhos. Apenas de cueca, manuseou suas roupas procurando vestígios de batom, bebida ou os furos de cigarro dos seus amigos, mas nem cheiro tinha. A noite anterior era-lhe vaga e os sinais do dia seguinte que costumavam dar-lhe pistas de por onde andara hoje estavam tão escassos que ele se pôs a meditar no que poderia ter acontecido. Sua primeira reação racional foi checar seu bloco de notas, e num ímpeto buscou-o no bolso traseiro esquerdo de sua calça. Era o lugar mais seguro que poderia ter encontrado para guardar aquelas folhas que valiam ouro e o alívio transpassou em seu rosto quando tateou-as em seu lugar habitual. O mundo já podia cair lá fora, pois tudo estava

Imperfeito

chamo à este "clássico" por eufemismo. mas eis a versão mais condizente: Imperfeito II . “Que queres?” “Que me tomes por completa!” “Já não és mais nada! Já não mais existes! Podes me entender?” “Não, não posso! Que te fiz?” “Não fez! Nunca existiu!” “E que faço em tua fronte?!” “Perturbas-me! Somente isto! Pare de me atormentar, me seguir pelos cantos, que já não consigo mais vê-la em cada esquina!” “E me vês tanto assim?! Que nem mais consigo sair de casa se não em tua presença! Que minhas expectativas são encontrar-te aonde quer que eu vá! Que a Lua vem me escutando dia e noite!” “Contas tudo a todos! A cidade chora pelos teus arrependimentos! E, com tanta maquiagem, faz até parecê-los sinceros! Lua! Que Lua?! Que esta já não me visita há muito!” “E a noite deixou de aparecer por aqui?” “Desde você.” “Desde mim? Para que complicas tanto assim?” “Por que eu sou assim: complexo – por natureza.” “A complexidade pertence ao ser humano! E há de se gostar de s

Loucura

Falávamos de sonhos na noite escura. Falávamos de sonhos sem ter sonhado noite passada. Falávamos, despertos, de sonhos que sonhávamos ter. Falávamos nós dois, mas sozinhos em cada um. Falávamos de garotas, falávamos de nós mesmos. E do contentar-se com a companhia – de si próprio. E da insônia que se arrastava mais uma noite. E só não falávamos de tempo por que já havíamos o apostado. Falávamos de guerra, da loucura que vinha vindo, do vinho que se esgotou. Tudo para não pensar no tédio que nos assombrava. Dois garotos trancados no escuro. E de repente são três batidas na porta de madeira.

Vênus

Não pude me conter. Ao seu lado eu era inquieto e meus pensamentos se enrolavam. De olhos nus, a me observar com certo apreço e contendo suas palavras com vírgulas cuidadosas e leve sonoridade. Falava perto de meu ouvido, quase como uma confissão, sem se importar com a multidão ao redor. E, de tão próximos, eventualmente nossos corpos se encontravam e o contraste de sua delicadeza a meu lado ressaltava-se. Seus lábios tremiam. Os meus, provavelmente, também. Alguém me dissera ser a manifestação do desejo. Talvez fosse, eu não tinha por que duvidar. As minhas dúvidas eram de curiosidade, de ansiedade em conhecê-la, de decifrar os detalhes de seu corpo que gritavam, que se manifestavam em resposta às minhas caras. Seu sorriso discreto era indescritível; Calava-me as questões do viver por uma fração de segundo, saciava todas as necessidades que eu poderia ter, exceto a de poder chamá-la de minha. Mas, em meio à multidão, seu sorriso se desfez e ela recolocou seus óculos. Encarou-me por al

HALLOWEEN

Estive exausto. E então me pego sozinho em casa, numa noite nublada em que as estrelas se escondem e a lua foge dos olhos de algum amante-vagante. Vim pelas ruas, desacompanhado da claridade prateada, e a pensar no que tinha feito. A princípio o tempo passou devagar: as sirenes eram para mim e os vultos me perseguiam. Mas então resolvi me sentar no meio fio de uma avenida qualquer e assistir os carros e o tempo passarem enquanto esperava pelo peso da consciência. Enquanto esperava pela atuação policial, a justiça, o destino. Mas a paciência me faltou. E a viatura, confusa, rodava noite a fora, mas bem longe do local. Atrapalhados, homens da lei, em busca de saciar um desejo sádico que os motiva a profissão. Confesso que até me mantive sóbrio e intacto como uma prova deve estar: As mãos sujas do sangue já seco o qual eu não tinha coragem de limpar – Na verdade a coragem que faltava era o fascínio pela obra de arte que eu havia criado ao acaso. – E me apreciava de cima a baixo. Esticava

Valsa

Feita de areia. Com movimentos leves, poéticos, que, em sua altura, em seu equilíbrio nos braços de outros, alcançava o infinito com os olhos erguidos. Pálida de tão clara, com a expressão quase indecifrável da profundeza que levava cada gesto e cada passo. Livre por todos os sentidos. E em palavras ou não, perplexa pela beleza. O encanto do segundo que se passa no toque. Em seu corpo o depreciar do tempo no ritmo impecável. Mas, indiferente ao relógio, a coreografia espontânea. Como versos, por assim dizer, lançados ao ar. Uma noite que corre apressada para quem dança sem o amanhã. A tempestade, bem além do tempo, para castigar os despertos. E na solidão, então na ousadia, a nudez de quem desafia os olhos do nada. As notas musicais, mudas, roçam suas curvas sem nada dizerem e o silêncio sempre foi propício à dança. Ela procura por quadros que a assistam, paredes que a ouçam. Procura por poetas que a imagine. Eu acho que nunca vou dormir esta noite.

Sinfonia de uma Manhã Nublada

É manhã. Mas de tão cinza quase que ainda é madrugada. E eu me desperto tão sonolento que, sem convicções de realidade, tudo que acontece é automático. A mesa de café já posta, me esperando desde a noite anterior, recebe os frios que distribuo aleatoriamente sobre ela. Resolvo presentear os vizinhos e, no velho rádio da sala, Yann Tiersen bate os dedos nas teclas do piano iniciando L’autre Valse d’Amelie. A televisão quase pulsa para reviver Amelie revirando páginas e páginas de fotografias 3x4 de rostos desconhecidos. A música refresca minha memória e agora eu estou deitado junto a ela no chão desta mesma sala. Cortinas fechadas, luzes desligadas e o som a nos envolver. Seu cheiro volta tão intenso que esqueço propositalmente o perfume para tê-lo mais tempos em lembranças. O sair de casa é quase doloroso, mas o cheiro da chuva me instiga a ver a rua. A vontade é de ir a pé sentindo as gotas na cara lavando o sonho lúcido da música. E, talvez eu resista e coloque o fone nos ouvidos par

Minha

Ela é minha. Toda ela, mas os cílios e as unhas que insistem em se descolar de seu corpo e se juntarem ao chão. Sem lei-de-três-segundos: a gravidade é ávida e egoísta, e eu também o sou. A minha posse é um desvairo. E ela é tão minha quanto qualquer outra. E que fossem todas! Que a vida fosse essa orgia que vivemos numa cegueira voluntária, entoando gritos de "amor livre" para justificar nossos atos que fazem pesar uma consciência de valores tradicionais. Ou que fossemos realmente desprendidos e o desapego nos guiasse: quantos dentes tem a chave que arromba teu segredo e adentra teu íntimo sem que possas intervir? Quem é aquele que depõe contra tua liberdade e te faz atonita? O mundo urge para os hedonistas e a cobiça desacerbada elimina preliminares. A miopia do êxtase não deixa espaço para os  detalhes e é o observador que sabe o que é refino. À estes estão resguardados o prazer; E é por isso que ela é minha.

Taças Trincadas

Sobrou vinho. O bastante para levá-lo de volta ao ápice da noite anterior. Até então a alegria existia e com mais dois goles poderia ser obtida. Era sempre essa dosagem: dois goles. Que com um se aproxima e no segundo vêm à tona. Porém, em pares de dose a garrafa ia se acabando. Sobrou vinho. Quase que planejado. O suficiente para embranquecer as lembranças. Quão frustrante seria saber que passara alguns quartos de hora a desvendar a madrugada passada? E para quê? Se não há memória, não há pesar. Emoções injustificadas devem ser afogadas. Guarde apenas as rolhas consigo.

Pontual

Quatro horas. E eu consulto, de minuto em minuto, o relógio em meu pulso. Olho nervoso ao redor. Procuro em cada canto e nem tenho disposição para pousar os olhos tranquilamente e apreciar os detalhes da paisagem. São carros que me cercam, que passam apressados se revezando no conceder da preferência, indiferentes à minha espera vagarosa. Mas espero. Não sei se ainda ansioso, mas de pernas bambas e coração acelerado. Crio hipóteses – será que fui abandonado, esquecido? – e enquanto persisto em minha sina sinto os fios de minha barba crescerem e as rugas se formarem e me deformarem. Já são cinco, quase seis, e o sol vai se arrastando num céu cor-de-rosa apoiado em flocos de algodão movidos pelo vento da tarde. Vento este que me arrepia, que sopra e me trás a rosa para colocar em seu cabelo. Se você chegar. Será que pelo menos a Lua aparece?

Interrompida

Chegou entoando a voz e a perdeu no meio do caminho. Rosas não lhe eram dadas todos os dias. E tinha mais: a chuva nunca esperava por ela para cair. Havia ainda o detalhe de a chave ter sido destroçada ao enfiá-la com muita força na fechadura e, enfim, ao adentrar seu lar, o caos do banheiro esquecido pelas manhãs e ignorado nas noites de extremo cansaço, ou seja, todas. Mas as rosas. Que o café era velho e a dispensa vazia o deixava amargo. Mas era bom que assim ela podia seguir o dia já desperta e atenta. E, além da chuva, o ônibus também. Largada para trás no ponto. Seja pela multidão que ocupou o lugar dela ou pelos minutos que ela se permitia a mais na cama sem ressentimentos – a curto prazo. As nuvens também não ajudavam. Por que tudo cinza? Ela tinha de se perguntar. E as questões só a assaltavam quando a viam só. Sem ninguém para perguntar e nenhuma pétala para bem-me-queres-mal-me-queres. Os passos estrondosos e um sorriso de cabeça para baixo. Quis chiar. E estava com a aparê

A Floresta

Os ouvidos, apurados, tateiam o som. Ela o persegue. São passos lentos, mas firmes, que regem um suspense, uma curiosidade que lhe cai bem. E cada vez que nota as notas ela adentra ainda mais àquela floresta. Anda tão distante de si que demora a reparar nas sombras dançantes, a valsa que toma a flora em seu desabrochar. A garota se estupefaz! A vida brota em cada poro e a cor surge de todo canto e tudo sugere-se tão convidativo e contagiante que seus pés que recearam pisar nas silhuetas das árvores não se demoram, adiantam-se. O gato em seu encalço, busca os fiapos que escapam da bolsa à tiracolo. A costura movimenta-se ao vento e faz com que o animal entretenha-se atrás da garota. A música deixa seu rastro, inclusive no rosto da menina, em um sorriso de fascínio e na determinação em alcançar a origem do sonido Os raios de sol sobrevivem à cúpula das árvores e clareiam o local. Acima da cabeça da garota, um céu esverdeado formado pelos tantos galhos que se entrosam e se enrosca

Estou morto.

E confesso, foi no terceiro dia longe de ti. quem diria que a eternidade é composta de setenta e duas horas?

Inconstante

Da meia noite ao meio dia sou narcisista e admiro cada uma de minhas manias. Do meio dia à meia noite sou persistente em me livrar de todas elas

Lacuna

- Faltando alguma coisa? Falta, o garçom sabe pela expressão. A princípio falta a coragem para admitir. Depois faltam lembranças que vêm fugindo dele há uma semana, o amor próprio que não foi encontrado nas redondezas do bar, algumas explicações a receber, confissões a fazer e a sobriedade tomada à força pela bebida. Falta a mulher que o colocou ali, os amigos que não o acompanharam e o dinheiro que o tiraria dali. Enfim. -Falta outra dose.