Néctar

As estações estão prestes a mudar. Antes eu pensava ser uma troca, sabe? Uma chegava e a outra consentia em se retirar e estava tudo certo. Do inverno íamos à primavera e tudo ficava florido: as crianças faziam em seus desenhos sóis sorridentes, as pessoas se empolgavam em aposentarem no fundo do armário seus casacos pesados e até as abelhas e borboletas se preparavam para voar de flor em flor em busca de seu néctar. Eu acabei descobrindo que não é bem assim.
O sol se impõe à força e atropela as estações. Parece-me até que o verão pretende pular a primavera, furar fila na cara-de-pau e irradiar o calor que lhe é tão característico. É como se o inverno tivesse sido encurralado ou andasse em uma ponte, dessas de navio pirata, com uma arma apontada para suas costas que o fizesse andar passo a passo em direção ao oceano.
O abismo abriga estas estações vencidas, todo este passado que vem à tona. E é muito estranho falar de passado... nesta carta atemporal.
Passado não temos. Talvez alguns resquícios de lembranças da fisionomia um do outro ou uma palavra trocada em uma ocasião inevitável, mas isso não significa nada. Que nem existimos! Atualmente – e eu digo no meu “agora”, por que no seu, ao ler esta carta, e se eu decidir enviar, já não será assim –, eu sou apenas um número na estatística que o jornalista apresentará mais tarde em rede nacional, ou sei lá, no canal em que você assiste. Eu sou, talvez, um rabo que fará um nó em seu pescoço ao passar apressada ou, quem sabe, um rosto que te lembre alguma amiga, ex-namorada, que seja! Eu não sou nada!
E eu não sou nada. Não sou louca por você, não quero sua amizade, não anseio nem sua atenção. Sou indiferente. Mas sei que, ao lhe escrever estou me contradizendo. Sei que, ao lhe enviar, estou exposta à principal lei da natureza: o equilíbrio. Se te escrevo, tu me lês. Qual o propósito deste tempo que emprego em linhas soltas e que, mais tarde, talvez, te amarrem a mim?
Ignoro. Caio então em um dilema: seria covardia escrever-lhe assim, tão espontaneamente? Despertar-lhe em um solavanco, não seria um choque? Mas resolvo-me! Pois mesmo que eu espere dias, semanas, meses, ainda assim lhe soaria, não sei... rápido demais?
Se eu te enviar esta carta eu imito as estações, entende? Eu me torno o próprio sol: impondo luz e energia. De forma mais ousada: torno-me seu centro, sua claridade e, no entanto, nunca “sua”. Aliás, vou além do sol: torno-me dona de seus pensamentos, assunto de seu diálogo interior, motivo de sua insanidade. Torno-me uma dúvida: “por quê?”.
Dizem que nada acontece por acaso. Bem, eu não acredito em sorte, mas, se ela existe, talvez nunca saibamos quando a temos em mãos. Imagino-o culpando-a por não a possuir: tem em mãos minha carta. Ou não, quem sabe você precisava mesmo de um rumo na sua vida; um alguém por quem procurar. Pensando bem, eu me sentiria sortuda por me ter em minha vida, mesmo como uma anônima.
Acaso ou não, vejamos: cara e a carta é tua, coroa e é da gaveta.

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