Liberdade Condicional
Acordou ainda exausto, de boca seca, dor de cabeça e sem saber o que pensar. Cheirou a camisa, desabotoou-a e livrou-se dela. Depois dos sapatos, que já o incomodavam. Ele sempre ficava intrigado quando dormia completamente desconfortável como daquela forma, pois normalmente o sono lhe faltava e era um suplício fechar os olhos.
Apenas de cueca, manuseou suas roupas procurando vestígios de batom, bebida ou os furos de cigarro dos seus amigos, mas nem cheiro tinha. A noite anterior era-lhe vaga e os sinais do dia seguinte que costumavam dar-lhe pistas de por onde andara hoje estavam tão escassos que ele se pôs a meditar no que poderia ter acontecido.
Sua primeira reação racional foi checar seu bloco de notas, e num ímpeto buscou-o no bolso traseiro esquerdo de sua calça. Era o lugar mais seguro que poderia ter encontrado para guardar aquelas folhas que valiam ouro e o alívio transpassou em seu rosto quando tateou-as em seu lugar habitual. O mundo já podia cair lá fora, pois tudo estava em ordem. Até então.
Ele nunca estivera à venda. Talvez este fosse o principal motivo por ser tão mal visto na vizinha e por ter adquirido diversos rivais em tão pouco tempo. Nunca fora um novato nem imigrante, mas sempre vivera à margem dos ciclos sociais tradicionais e tinha acesso à informações almejadas por "gente de bem". Logo, isso se tornou um problema.
Levantou-se de seu colchão e deu alguns passos até o banheiro. Seu lar consistia em um aposento apenas e o lavabo anexado, portanto o banheiro era seu cômodo ritualístico e era ali aonde costumava virar as noites pensando quando tinha preocupações a serem resolvidas. A lista de telefones ainda estava sobre a pia e deu-lhe uma leve ideia do que fizera na noite anterior.
Talvez tivesse saído atrás daquele nome, talvez apenas encarara-o incerto do que sentia por aquela entidade. Dentro da lista, um papel cheio de rabiscos aleatórios que apenas indicavam surtos de alucinação e não davam qualquer prova mais concreta.
Ele se cercava de atos subliminares a fim de mascarar o que sabia, até que pudesse agir e ele mesmo se perdia nessa confusão, mas estava acostumado a viver em meio ao caos. Sempre que estava próximo à concluir alguma linha de raciocínio ele se deparava com a elucidação dos mistérios, como se sua mente revisasse cada amnesia e noite perdida e lhe desse uma síntese de suas aventuras inconscientes. Não era o método mais eficaz, mas era o menos dogmático que ele conhecia e por ser tão cifrado agradava-o, já que, em sua paranoia, vivia sob os olhos do Grande Irmão. Sua liberdade, ainda que nunca tivesse sido preso, sempre fora condicional.
Olhou ao redor: seu coturno ao lado do colchão, o suspensório largado no caminho, suas gazes por todo aposento e diversos tipos de garrafas de bebidas, algumas pela metade e outras vazias e tombadas. Apesar da bagunça, seu quarto estava relativamente limpo e abrigava apenas o essencial para que ele pudesse viver ali. A verdade é que não costumava passar muito tempo em casa, mas depois daquele corte que arranjara na altura dos olhos ele passara a se trancar até que o período crítico de cicatrização passasse. Talvez este era outro indício da noite anterior: não havia saído, tinha permanecido em casa na companhia das garrafas.
Sentou-se sobre o vaso sanitário e pôs-se a folhear a lista de endereços, interessado nos nomes circulados e anotações de rodapé. Talvez ele tivesse algumas chaves anotadas em seu caderno de folhas de ouro; talvez não estivesse tão perdido como pensava estar.
Levantou-se do vaso e mirou-se de passagem no espelho: sua cabeça não apresentava um fio de cabelo sequer e sua barba aguentava esperar mais um dia para ser feita. O corte em seu rosto é que não estava em ordem. A marca lhe dava arrepios e ainda doía só de ser olhada, portanto desviou os olhos.
Buscou o caderno no bolso da calça e folheou-o com interesse. Releu suas últimas anotações e de repente deu-se conta de que algo estava muito errado. Ele realmente não saíra e estivera dentro de casa a noite toda, e toda aquela sensação de não se encontrar ao acordar ainda o incomodava, mas era algo além disso: alguma coisa não lhe cheirava bem. Ele pensava ter pulado algum passo, esquecido de checar algum fato e estreitou os olhos procurando qualquer detalhe fora dos conformes em suas próprias coisas, mas não avistou nada de estranho. Quando voltava para o banheiro, entretanto, percebeu uma sombra no vão da porta de entrada do apartamento, do lado de fora de seu quarto.
Talvez, afinal, ele não tivesse saído de casa por que não tinha necessidade de fazê-lo. E se tudo estivesse próximo demais dele?
Foi até a janela grande do apartamento, uma das únicas vantagens e motivo principal de ele gostar do lugar aonde morava. Espreitou o movimento exterior e tudo andava em seu ritmo normal. Seu coração é que estava descompassado e ele precisava tomar alguma atitude.
Vestiu o jeans surrado com toda naturalidade do mundo. Manteve a calma e dobrou a barra da calça e colocou o coturno. Amarrou forte os cadarços vermelhos, abotoou a camisa e levantou seus suspensórios. Foi até o banheiro em passos contidos para não fazer muito barulho e tomou um largo copo d'água. Antes de abrir a porta, voltou-se até o travesseiro e buscou sob ele seu anjo da guarda: tinha em mãos um enorme e reluzente soco inglês, objeto de sorte e "fiel", como ele denominava. Armas de fogo não eram de fácil acesso e ele não era a favor desse tipo de intervenção, portanto usava-se do que ele achava mais justo.
Vestiu a socadeira com um contraditório sorriso sádico e mirou a sombra à sua espera. Dirigiu-se até a porta e girou as chaves devagar: nenhum movimento. Abriu a porta num estrondo preparando-se para se defender quando deparou-se apenas com um livro grosso depositado sobre o tapete de boas vindas. Riu-se da situação e leu o bilhete num garrancho áspero: "quem procura, acha."
Pegou o livro, abrindo-o na primeira página e lendo-o enquanto entrava de volta para seu lar: "Os mistérios solucionam-se sozinhos, mas é sempre preciso um nome para se creditar. Às vezes um homem tem de fazer seu trabalho para sobreviver, e às vezes esse homem é o único obstáculo no trabalho de outros homens. Isso acontece sempre quando algumas pessoas têm fontes de informações que outras não têm e são mesquinhos demais para compartilhar o que possuem. No caso..."
Nem viu a sombra que se aproximou às suas costas. Teria de adiar a leitura, de repente tudo fica escuro.
Apenas de cueca, manuseou suas roupas procurando vestígios de batom, bebida ou os furos de cigarro dos seus amigos, mas nem cheiro tinha. A noite anterior era-lhe vaga e os sinais do dia seguinte que costumavam dar-lhe pistas de por onde andara hoje estavam tão escassos que ele se pôs a meditar no que poderia ter acontecido.
Sua primeira reação racional foi checar seu bloco de notas, e num ímpeto buscou-o no bolso traseiro esquerdo de sua calça. Era o lugar mais seguro que poderia ter encontrado para guardar aquelas folhas que valiam ouro e o alívio transpassou em seu rosto quando tateou-as em seu lugar habitual. O mundo já podia cair lá fora, pois tudo estava em ordem. Até então.
Ele nunca estivera à venda. Talvez este fosse o principal motivo por ser tão mal visto na vizinha e por ter adquirido diversos rivais em tão pouco tempo. Nunca fora um novato nem imigrante, mas sempre vivera à margem dos ciclos sociais tradicionais e tinha acesso à informações almejadas por "gente de bem". Logo, isso se tornou um problema.
Levantou-se de seu colchão e deu alguns passos até o banheiro. Seu lar consistia em um aposento apenas e o lavabo anexado, portanto o banheiro era seu cômodo ritualístico e era ali aonde costumava virar as noites pensando quando tinha preocupações a serem resolvidas. A lista de telefones ainda estava sobre a pia e deu-lhe uma leve ideia do que fizera na noite anterior.
Talvez tivesse saído atrás daquele nome, talvez apenas encarara-o incerto do que sentia por aquela entidade. Dentro da lista, um papel cheio de rabiscos aleatórios que apenas indicavam surtos de alucinação e não davam qualquer prova mais concreta.
Ele se cercava de atos subliminares a fim de mascarar o que sabia, até que pudesse agir e ele mesmo se perdia nessa confusão, mas estava acostumado a viver em meio ao caos. Sempre que estava próximo à concluir alguma linha de raciocínio ele se deparava com a elucidação dos mistérios, como se sua mente revisasse cada amnesia e noite perdida e lhe desse uma síntese de suas aventuras inconscientes. Não era o método mais eficaz, mas era o menos dogmático que ele conhecia e por ser tão cifrado agradava-o, já que, em sua paranoia, vivia sob os olhos do Grande Irmão. Sua liberdade, ainda que nunca tivesse sido preso, sempre fora condicional.
Olhou ao redor: seu coturno ao lado do colchão, o suspensório largado no caminho, suas gazes por todo aposento e diversos tipos de garrafas de bebidas, algumas pela metade e outras vazias e tombadas. Apesar da bagunça, seu quarto estava relativamente limpo e abrigava apenas o essencial para que ele pudesse viver ali. A verdade é que não costumava passar muito tempo em casa, mas depois daquele corte que arranjara na altura dos olhos ele passara a se trancar até que o período crítico de cicatrização passasse. Talvez este era outro indício da noite anterior: não havia saído, tinha permanecido em casa na companhia das garrafas.
Sentou-se sobre o vaso sanitário e pôs-se a folhear a lista de endereços, interessado nos nomes circulados e anotações de rodapé. Talvez ele tivesse algumas chaves anotadas em seu caderno de folhas de ouro; talvez não estivesse tão perdido como pensava estar.
Levantou-se do vaso e mirou-se de passagem no espelho: sua cabeça não apresentava um fio de cabelo sequer e sua barba aguentava esperar mais um dia para ser feita. O corte em seu rosto é que não estava em ordem. A marca lhe dava arrepios e ainda doía só de ser olhada, portanto desviou os olhos.
Buscou o caderno no bolso da calça e folheou-o com interesse. Releu suas últimas anotações e de repente deu-se conta de que algo estava muito errado. Ele realmente não saíra e estivera dentro de casa a noite toda, e toda aquela sensação de não se encontrar ao acordar ainda o incomodava, mas era algo além disso: alguma coisa não lhe cheirava bem. Ele pensava ter pulado algum passo, esquecido de checar algum fato e estreitou os olhos procurando qualquer detalhe fora dos conformes em suas próprias coisas, mas não avistou nada de estranho. Quando voltava para o banheiro, entretanto, percebeu uma sombra no vão da porta de entrada do apartamento, do lado de fora de seu quarto.
Talvez, afinal, ele não tivesse saído de casa por que não tinha necessidade de fazê-lo. E se tudo estivesse próximo demais dele?
Foi até a janela grande do apartamento, uma das únicas vantagens e motivo principal de ele gostar do lugar aonde morava. Espreitou o movimento exterior e tudo andava em seu ritmo normal. Seu coração é que estava descompassado e ele precisava tomar alguma atitude.
Vestiu o jeans surrado com toda naturalidade do mundo. Manteve a calma e dobrou a barra da calça e colocou o coturno. Amarrou forte os cadarços vermelhos, abotoou a camisa e levantou seus suspensórios. Foi até o banheiro em passos contidos para não fazer muito barulho e tomou um largo copo d'água. Antes de abrir a porta, voltou-se até o travesseiro e buscou sob ele seu anjo da guarda: tinha em mãos um enorme e reluzente soco inglês, objeto de sorte e "fiel", como ele denominava. Armas de fogo não eram de fácil acesso e ele não era a favor desse tipo de intervenção, portanto usava-se do que ele achava mais justo.
Vestiu a socadeira com um contraditório sorriso sádico e mirou a sombra à sua espera. Dirigiu-se até a porta e girou as chaves devagar: nenhum movimento. Abriu a porta num estrondo preparando-se para se defender quando deparou-se apenas com um livro grosso depositado sobre o tapete de boas vindas. Riu-se da situação e leu o bilhete num garrancho áspero: "quem procura, acha."
Pegou o livro, abrindo-o na primeira página e lendo-o enquanto entrava de volta para seu lar: "Os mistérios solucionam-se sozinhos, mas é sempre preciso um nome para se creditar. Às vezes um homem tem de fazer seu trabalho para sobreviver, e às vezes esse homem é o único obstáculo no trabalho de outros homens. Isso acontece sempre quando algumas pessoas têm fontes de informações que outras não têm e são mesquinhos demais para compartilhar o que possuem. No caso..."
Nem viu a sombra que se aproximou às suas costas. Teria de adiar a leitura, de repente tudo fica escuro.
Acho excelente a ideia de nos encontrarmos no msn, mas tem uma condição ;P
ResponderExcluirNão sabia eu mesma que escondia perfumes em minhas linhas. Contudo, não posso dizer que não seja proposital. De qualquer forma, você se mostrou bom em encontrar tudo que eu escondo, os perfumes, meu rumo e em específico, saber cada parada minha somente por minhas palavras. E olha que eu não sou muito boa nessas situações onde me apresento tão previsível pra alguém - talvez até por ser bem incomum.
ResponderExcluirOlha que sorte tens, tenho aqui um ouvido distante, apurado e mais: atento às tuas palavras.
Eu também vejo meu tempo, meu sono e principalmente sonhos se esvaindo pelas minhas mãos. Mas nunca fui detentora dos mesmos.
E quanto ao Homem de Areia, conversa com ele. Peça encarecidamente que venha me visitar. E se possível, faça companhia a ele =)
Achas mesmo que eu deixaria de te procurar caso estivesse ao meu alcance?
Me permite dizer que as tuas descrições são muito boas e sempre me intrigam?
o texto é gigante. jasdgdgjsahdd mas ele ficou tao bom que eu nao me senti incomodada em ler. eu gostei.
ResponderExcluir...traigo
ResponderExcluirsangre
de
la
tarde
herida
en
la
mano
y
una
vela
de
mi
corazón
para
invitarte
y
darte
este
alma
que
viene
para
compartir
contigo
tu
bello
blog
con
un
ramillete
de
oro
y
claveles
dentro...
desde mis
HORAS ROTAS
Y AULA DE PAZ
TE SIGO TU BLOG
CON saludos de la luna al
reflejarse en el mar de la
poesía...
AFECTUOSAMENTE
TEMPO EXTRAÑO
ESPERO SEAN DE VUESTRO AGRADO EL POST POETIZADO DE CHOCOLATE, EL NAZARENO- LOVE STORY,- Y- CABALLO, .
José
ramón...
O que mais curto em seus textos sao as riquezas de detalhe... otima estória!
ResponderExcluirTenho que concordar com os seus amigos, pelo menos o que diz respeito aos teus textos. Involuntariamente sempre me corre um filme na mente quanto estou a lê-los. Consigo enxergar nitidamente cada detalhe.
ResponderExcluirE é exatamente isso que me faz desistir de assistir a filmes após ter lido o respectivo livro. Não gosto que contrariem minha imaginação =D
Então o senhor me diz que além de escrever também possui dons musicais? Ora, ora haha. Por essa eu não esperava.
Se eu fosse você deixaria a comodidade de lado e tratava de cutucar esse teu amigo quanto às ilustrações. Acho que seria uma ideia e tanto.
Aqui em Angra tem bastante areia hahah =) Sempre acompanhada de mar e isto eu posso dizer: não conheci ainda companhia melhor.
Sem mais delongas revelo minha condição - estúpida, eu sei - tens de me prometer que não irás rir do meu email pré-adolescente hahah ;)
gostei de cada linha, do encaixe de cada palavra. Mas uma coisa em atormenta. Você não vai continuar? quero saber o que virá depois, e depois e depois. É chato dizer isso, mas digo porque gostei e fiquei curiosa. Beijos
ResponderExcluirnó! nunca fui intimado a continuar um texto, mas, confesso, senti a vontade!
ResponderExcluirDa forma como termina dá um espaço para comparação com o filme 'Amnésia' e eu só fui perceber isso depois que alguns amigos comentaram sobre o fato, no entanto, não era a intenção.
Bem, as pessoas sempre recobram a consciência... é o que nós costumamos chamar de vingança. hahaha =D
Oh atormentado Nuts, sua alma imersa em alegoricos devaneios trancedentais, dos quais esprime em frases... por onde caminha teu destino caro companheiro ?
ResponderExcluir"no escuro, parado, a nevoa embassa-me à visao nebulosa, o sonoro vento corrente mostra que a queda já nao esta mais tao longe, e agora já tao perto é impossivel nao dar mais este passo:
e o precipicio a espreita.. apesar de medonho, só ele nos trara a vitalidade da queda e a paz do pós empacto"
a mente é um lugar escuro para pessoas como nos nao ? e a luz só vem com a procura....