Apoteose
ao som de Spacemen 3
Começa
escuro.
Eu andava
apreensivo, sem muita paciência para ver filmes inteiros. Andei deixando a cama
pela madrugada e o sono pela metade; os cafés-da-manhã intactos e os da tarde
mordiscados levemente; as piadas no silêncio, completo. Os pensamentos longe
disso, num monólogo insistente. Andei abandonando ideias na lixeira do meu
cubículo, dando voltas mais longas com meu cachorro como pretexto para a
ausência, esquecendo-me de carregar o celular; esquecendo de carregá-lo comigo.
Um amigo havia
indicado. Amigo? Estive a perambular pelas noites até eventualmente deparar-me
com um alguém que parecia tão ou mais perdido do que eu. Acho que isto é motivo
para considerá-lo um amigo, faz com que a gente se sinta melhor, ainda que o interesse
fosse tão pouco.
Nesses casos,
quando se foge de casa para tomar um ar, opta-se por respirar, não existe nenhuma
semelhança entre você e qualquer coisa ao seu redor; não há ligações com o
mundo exterior! Nesses casos a indiferença reina e ela não diz uma palavra
sequer, pois ela serve ao silêncio. No entanto aquela praça era o local da
cidade que eu mais gostava e eu não pretendia estragar uma noite por ali por
conta de meu humor egoísta.
Com a boca
seca eu assistia a fonte desligada. Se fosse dia, com certeza eu me lembraria
das garotas com as quais já havia me sentado nos bancos que cercam chafariz,
tempos alegres em um repouso distante. Mas no estado em que me encontrava
aquele lugar não me remetia a nada, exceto a solidão dos monólogos confortantes
e a insônia do precavido, que não dorme para não ter pesadelos.
Eu pensava em
alguma loja de conveniência que pudesse me oferecer um trago. Um conhaque é
sempre sinônimo de alívio, mas me parecia impossível conseguir qualquer coisa
naquela madrugada; a vida parecia limitada àquela praça! Buscava então um
número de telefone qualquer, algum que tivesse escapado da agenda de contatos e
penetrado em minha memória, sobrevivido à modernidade cômoda que nos diminui,
mas nada. Estava eu ali: só e diminuto.
De passos
medidos e respiração contida, vagueando pela noite fria, cheio de tudo, mas de
cabeça vazia. E por isso eu aproveitava para capturar todos os detalhes, buscando
longe as luzes da cidade e projetando curtas-metragens na paisagem urbana. Misturava
ficção com aquela noite que também não me parecia nada real, a não ser pelo
orvalho que justificava tudo: o sereno afogava-me em memórias, e de olhos
cerrados eu tinha à voz de minha mãe os dizeres a respeito da madrugada.
A
desobediência na infância é curiosidade, no amadurecimento é persistência e na
velhice é cisma. No meu caso específico é um atrator estranho e quando se tem
um universo privado de uma única noite é difícil definir os acontecimentos como
acausais.
Eis que se
aproxima um alguém em busca de fogo e o diálogo desenvolveu-se mais ou menos
assim:
“Desculpe-me
a interrupção. Eu sei o quanto é indelicado proferir palavras a um desconhecido
em meio a uma madrugada dessas... mas você teria fogo?”
“Nunca se é
inconveniente quando usa-se de simpatia! Mas não, eu não fumo...”
“Eu também
não, mas o calor me acalma. As coisas andam bem estranhas ultimamente...”
Assenti num
gesto simples. Estava aliviado de não ser o único a perceber as coisas daquela
forma, mas o fato de deparar-me com pensamentos parecidos aos meus no auge de
minha solidão era algo ainda mais inusitado.
“Que lhe aflige?
Algo lhe passou?”
“Meu relógio
de bolso. Ele parou.”
“O tempo
degrada mesmo aquilo que o marca. Aliás, principalmente.”
“O problema é
esse: o tempo, parado. Percebe?”
Calei-me. A
ênfase que ele dera e a forma como ele pontuara sua fala me deixara sem
reações, então rendi-me ao silêncio numa postura contemplativa. Ele continuou e
eu o acompanhava, ainda confuso:
““Deus me
abandonou no meio de uma
orgia entre uma baiana e uma egípcia. Estou perdido. Sem olhos, sem boca, sem
dimensões.””.[1]
“Deus?”
“Não, Carlos
Drummond.”
“Ah, sim. Que
carnaval!”
“Sim, “Um
Homem e seu Carnaval”[2] –
ou parte dele.”
Agora eu
podia perceber o quão velho o homem era. O tempo já carimbara sua face, seu
rosto, suas manias, versos, objetos... Justificava muita coisa e fazia com que
eu o reconsiderasse: ele me soava um tanto desobediente, mas de cisma ali não
havia nada. Pertencia também à outra categoria, estava além de conceitos
pré-definidos.
O fim da
noite interrompeu meus pensamentos, não pude deixar de comentar:
“O dia
clareia sobre nós. Tão cinza...”
“Mas que me
diz de alongarmos um pouco mais a noite?”
“Soa bem.
Para onde vamos?”
“Para lugar
nenhum. A noite se vai, nós permanecemos.”
Já não havia
aurora. Cessara o alvorecer e o céu ostentava novamente uma lua torta e nuvens opacas
que a encobriam e ofuscavam. Temeroso e imponente, desafiava-nos o olhar. E começava
a chuviscar.
Chuviscava em
minha televisão.
To exausta do tempo, ele é tão cansativo...e faz a gente encarar sempre que o infinito não existe.
ResponderExcluirMe deu vontade de perguntar, mesmo sem nenhuma coerência ou explicação: como vai você?
ResponderExcluirsinceramente? eu vejo este texto como uma previsão de meu estado atual. Quando eu o escrevi eu estava melhor; eu já estive melhor...
ResponderExcluirmas e você?