De mãos vazias
Recebeu-me em seu quarto vazio no meio da noite. Vivi de visitas inesperadas ao longo desses últimos meses. E ainda que, agora, de volta ao lar – devo acrescentar, por tempo indefinido – minha cama me estranha e se murcha ao receber meu corpo encolhido na madrugada gelada.
Sussurrou-me algumas palavras confortantes entrecortadas pela boca apoiada nos joelhos. Sentava-se no encontro das paredes, ao lado do espelho, mas o evitava com certo repulso. A cabeça baixa já não era novidade e as histórias que um dia se fizeram de sonífero agora, todas esquecidas. Resolveu se desfazer delas por completo. E ali estavam, nas páginas amareladas, rasgadas no chão do quarto.
Quase nem fico. Que o passado bate forte e se perco o controle sou eu o dominado. Mas o tenho, meu anfitrião, de volta à origem, rendido, como um garotinho em plena prenda no canto da sala de aula. Que devaneios o devoram e o tempo o humilha, por castigo ou simples prazer.
Apesar de aflito, mantenho-me calado: sei que o Deus do Tempo é imune a desesperos prolixos e que sou só mais um tolo embriagado posto na fralda da noite. Mas sou todo perguntas em meu recordar: desde a ligação surpreendida pela insônia de meu companheiro ao meu auto-convite. Quem me respondera diante ao telefone?
E quem era mais próximo de mim? Aquela criança resmungona e teimosa ou o indivíduo que possuía meu respeito? E, afinal, não eram os mesmos, idênticos, embalados no mesmo corpo magrelo e de baixa estatura?
O espelho, ignorado, gritava as respostas e me expulsava: que com a consciência há de se lidar sozinho e minha presença era, além de ineficaz, constrangedora.
Que o silêncio permaneça. Peço licença apenas com o ranger da maçaneta e meus passos tortos, cambaleantes quase como os pensamentos, nos tacos de madeira.
Deixo-o em paz e volto-me para a rua imaginando a reação de meu amigo no dia seguinte. Estive lá, mas ele: recordar-se-á de quem?
E fico a pensar...
Sobre minha vida boemia que me fez esquizofrênico.
É inacreditável como você sabe usar as palavras certas para descrever uma situação, ou qualquer coisa que o valha. Parabéns pelo talento!
ResponderExcluirDeus... a cada segundo melhor. Chico, muito, muito bom. Parabéns.
ResponderExcluirMel
Sobre minha vida boemia que me fez esquizofrênico. [1 person likes this]
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