Exílio
Seu coração precipitou-se ao passar pela porta. Já não era o
bêbado alegre do bar. Depois de horas na companhia das intermináveis doses de tudo
o que tinha direito, conseguira descontrair-se e ensaiar um sorriso para os
passantes que o encaravam com uma mistura de piedade e desprezo. Não adiantava
enganar-se, estava murcho: no lugar do sorriso sustentava um peso na face, e no
lugar do copo, as mãos vazias, que ilustravam o que ele pensava da vida àquela
altura – e era um homem de meia-idade
ainda. Apoiou-se no umbral e encarou o cômodo à sua frente com uma mão sobre o
estômago. Talvez o álcool não tivesse caído bem ou talvez ele já estivesse
sóbrio o suficiente para encarar sua realidade.
Havia alguns dias ele prorrogava o destino sabendo sê-lo inevitável.
A angústia que havia se apoderado dele trazia consigo o silêncio perturbador.
Já não era capaz de pronunciar palavras e sentia-se um vegetal. Tinha largado o
emprego, as contas venceram e desfez-se do celular estridente arremessando-o
contra o solo.
Empilhou a mobília da casa atrás da porta da frente tentando
esquecer-se do mundo externo, mas era impossível. Pelas frestas as sombras
dançavam durante todo o dia e sugeriam uma multidão que o desaprovava. Em seu
mundo silencioso o barulho de pregos perfurando a madeira da entrada de sua
casa o torturava. Sua porta estava preenchida com ameaças e apelos, como ele
bem imaginava, assim como alguns dos vidros de suas janelas haviam sido quebrados,
provocando-o um arrepio o som cortante do estilhaçar. Ele, sobretudo, tinha os
nervos frágeis e tinha de se encolher para conseguir dormir. Quando conseguia.
O desespero vinha então lhe encerrar a noite precocemente e
coroar-lhe com as olheiras que lhe envelheciam alguns anos e ilustravam seu
estado de vigília involuntário. Desfeito de rigor e de horários, alguns
poderiam tomar-lhe como o sonho realizado das férias instantâneas; de jogar
tudo para o alto e viver conforme sua vontade, mas a verdade é que aquele homem
estava passando por maus bocados.
Tédio é luxo. Quem sente tédio é, no mínimo, mimado. Quem
sente tédio tem tempo livre de sobra para não fazer nada por muito até que
sinta-se cansado disso. Quem sente tédio está maldisposto de estar bem-disposto!
Ou melhor, está maldisposto por não conseguir conviver consigo, por que quem
aproveita-se em sua companhia não se sente entediado. Nosso homem não tinha
tempo livre para se sentir entediado, pois passava o dia em uma patrulha
neurótica à qual ele denominava sobrevivência. Mas, decerto, ele nunca soube
tolerar-se e toda aquela solidão agravava seus sintomas. E foi quando as
suposições começaram a ganhar vida e ele imaginava um mundo no exterior de seu
labirinto.
Pois talvez as fofocas já tenham tomado suas devidas
proporções. E talvez os vizinhos já tenham se reunido extraordinariamente,
quiçá o bairro. A própria polícia podia já estar a par da situação e pode ser
que hajam homens a postos esperando um deslize seu para lhe tomarem a guarda de
sua vida.
Ele visualizava as expressões faciais dos moradores do
prédio ao passarem por sua porta. Previa as mentiras que estavam sendo ditas,
os falsos testemunhos e a injustiça que estava sendo cometida diante dele e
quanto mais assistia o rumo distópico que as coisas tomavam, mais impotente
sentia-se.
Por isso decidira isolar a janela. Também por que os vidros
estavam sendo quebrados cada vez com maior frequência. Reorganizara os móveis
que seguravam a porta de entrada a fim de que tapassem qualquer fresta que
pudesse revelar-lhe um vestígio de sombra. O pobre Minotauro cercava-se em seu
labirinto, acuado nos limites que lhe restavam e indeciso sobre suas
possibilidades. O desespero era tão mordaz que vez ou outra ele encarnava uma
fúria cega, colocando-o a andar desnorteado pelos aposentos do apartamento em
passos estrondosos e punhos cerrados à procura de respostas inexistentes.
Estes surtos duravam uma média de meia hora e durante estes
momentos ele esquecia-se de todo o silêncio que conservava sagrado. Batia
portas, esmurrava móveis e deteriorava o que restava de sua casa, até terminar
em um choro convulsivo que começava por um gemido agudo e terminava, geralmente
num sono aliviado, encharcado em meio às próprias lágrimas.
Contavam-se duas semanas desde o encolhimento. Cinco dias,
então, desde o início das crises e estas eram cada vez mais comuns. Os poucos
momentos de lucidez que lhe restavam ele os empregava tentando obter
informações reais do que acontecia do lado de fora. Tinha consciência de suas
alucinações e daquela síndrome de perseguição que vinha se instalando nele, mas
ao mesmo tempo não sabia discernir o quanto daquilo era apenas fruto de sua mente,
já que aquelas consequências lhe pareciam bastante plausíveis.
O som sereno da rua abaixo de suas janelas lhe deixava ainda
mais confuso e as ventanas vedadas o impediam de ter alguma certeza sobre o que
quer que fosse. De fato, ele conseguia imaginar que poderiam terem o tomado
apenas como um excêntrico e toda aquela tragédia era um tanto cômica deste
ponto de vista. E doía-lhe ver que suas fantasias acabavam por traduzirem-se
num egocentrismo exacerbado e que sua solidão era capaz de ter gerado todo o
tumulto. E talvez estes espasmos de lucidez fossem mais dolorosos do que as
crises coléricas, mas por sorte, ou não, eram ligeiros.
Passou-se um tempo e sua última reflexão havia se provado
benéfica, pois desde então estivera bem mais calmo e aliviado e pôde sentar-se
em um canto da sala de estar em silêncio consigo até que o Sol se pusesse. Caía
a noite e as luzes do apartamento, já cortadas pela companhia elétrica,
sugeriam-no que fosse dormir. Era muito cedo para isso. Ele estava num estado
de excitação fora do comum de forma que não conseguiria pregar os olhos, então
reiniciou suas andanças sem rumo pela casa. Já havia se perdido em si há muito
e agora buscava-se em qualquer canto, sob qualquer hipótese, algo que tivesse o
poder remetê-lo à si, despertá-lo do torpor e pô-lo de volta ao que costumava
ser. Buscava transpor o abismo que vivia, e nem consciente desta busca estava:
apenas zanzava pela casa, fatigado. E eis que em suas andanças adentra ao
banheiro e depara-se com o grande espelho que refletia os vestígios do que
aquele homem fora um dia.
A princípio assustou-se
e exaltado, encarou-se com extrema aversão. Estático mas irritadiço. Então seus
punhos se dissolveram em dedos e seus pés descalços puderam sentir o mármore
frio acalmando-lhe os nervos. Seu corpo se descontraía e o silêncio reinava
como era de costume: diante de nós mesmos sempre há perplexidade. Por fim
constatou os destroços que era e uma tristeza lhe abateu. Aí soube que o que
sentia era saudades de si, mesmo que de certa forma nunca tivesse se dedicado
realmente a compreender-se.
Por saudades, soube-se humano. Nostálgico, soube-se
sensível. Espelhado, soube-se enamorado. Mas não como Narciso, e sim como
Sidarta! Não pelo espelho, mas pelas possibilidades que via florescer diante de
si! Admirava o campo de oportunidades desabrochando-se epificanicamente e
sentiu-se inspirado para tentar algo novo. Quem sabe um passeio pelo bairro,
visitar lugares que lhe agradavam, ou mesmo visitar lugares que ele nunca havia
visto. Não importava, queria se ver longe dali.
Tateou por um traje no guarda-roupa que agora também
guardava a porta de entrada. Fez-se vaidoso, pensou até na possibilidade de
tomar um banho e arriscou a água gelada, ainda que por poucos minutos. Revirou
armários e gavetas e conseguiu perfumar-se e encontrar alguns trocados perdidos
para investir em sua empreitada. Analisou-se mais uma vez no espelho e sorriu
feliz, concluindo com um beijo na superfície fria. Estava radiante!
Nosso homem, que há pouco tempo atrás era bicho – do mato,
ainda por cima – agora empurrava e relocava os móveis liberando a passagem para
a rua. E na operação teve uma ideia: por que não visitar seu bar predileto onde
ele costumava ir com bastante frequência? E de lá, quem sabe, visitar alguma
velha amiga ou o que quer que fosse que homens normais faziam quando estavam
bêbados. Era uma ótima ideia, ia seguir o plano. Era um “homem normal”.
Ao deixar seu covil abafado respirou aliviado. Tomou um
fôlego e deu seu jeito de sair das imediações do edifício, pois não queria ser
julgado, encarado, questionado ou ter qualquer tipo de contato com os moradores
que o cercavam. Voltara a imaginar a inquisição e estes pensamentos lhe davam
arrepios, portanto fez-se ligeiro e imperceptível e passou pela portaria sem
deixar rastros.
Andou até a esquina e dobrou-a ainda com a mão no rosto,
como se fosse um fugitivo não querendo ser reconhecido. De fato o era, mas
assim que chegou à uma distância segura de seu cárcere se pôs a andar leve e
tranquilo, assobiando enquanto rumava ao bar predileto. Era um final de tarde e
ele imaginava que a ocasião era perfeita para comemorações, a julgar pelo seu
estado de espírito. Já os vizinhos o julgavam insano, e os leitores, no mínimo,
bipolar.
Chegou ao bar e fora logo notado. Virou assunto das
conversas alheias e por isso sentou-se no balcão e não na mesa habitual. Apesar
de tudo, não se sentia intimidado e foi logo pedindo uma, duas, três doses.
Bebia e ia se divertindo só, observando a movimentação do local. Ninguém havia
arriscado uma aproximação e as únicas palavras que trocara fora com o atendente
que não quis lhe dar muito papo.
Bebia, e quanto mais bebia mais se deparava com a solidão.
Havia trocado seu invejável bom humor por uma ordinária embriaguez, que até lhe
garantia uma “alegriazinha”, mas era só gíria para explicar o quão bêbado estava.
Descobrira que não encontraria alegria ali. Pensou-se no lugar errado, na hora
errada. E nem admitira seu fracasso: apenas levantou-se, pagou a conta e
retirou-se sob as gargalhadas de tantos e críticas de outros que nem lhe
atingiram de tão absorto que estava.
Não teve ânimo para passeios longínquos. Apesar da hora e da
rua mais vazia, ainda era uma celebridade mal falada e não queria ser
perturbado, portanto tomou o caminho mais rápido para o que ele chamava
vulgarmente de casa. Já não sabia se era aonde ele desejava estar, mas não
tinha muitas opções.
O passo acelerado ilustrava o ritmo dos pensamentos
deteriorantes que desfiguravam uma organização mental muito displicente. O homem
se martirizava, assistindo com agrura seus fracassos de toda a vida passarem
diante de si em imagens vívidas que produzia e projetava na tão sofrida volta
para casa.
O pesar abatera-o e seu passo pesou. Com esforço,
arrastou-se escadas acima até o andar que lhe era próprio, lutando contra as
ilusões que o assombravam, obstáculos quase que intransponíveis. E quando
chegou diante da porta deu um longo respiro e esperava recuperar o fôlego. O
coração acelerado, irregular, anunciava a tragédia.
Inseriu a chave na fechadura e girou-a. Escancarou a porta
rude e desastrosamente, num ímpeto que o denunciava. Pousou a mão sobre a
barriga e encarou a sala uma última vez: sua visão escureceu de súbito. Morrera
de desgosto.
E excessos.
muito foda, chico!
ResponderExcluirO come;o me lembrou um pouco a metamorfose.
Nada como renovar os textos, reescrevendo-os incessantemente. acho que agora sim.
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