Um Trecho Perdido

 uma história distante e mais passagens de outro capítulo 

- Você achou que eram apenas histórias distantes? Que haviam ficado no passado?
- Eu não sei bem o que eu pensava… para ser sincero eu nunca quis me alongar muito no assunto. Mesmo nas oportunidades em que os pensamentos me assaltavam eu tentava afastá-los para não ter que lidar com a sombra do mistério.
- Dizem que se contamina por muito pouco…
- E não é? Você mais do que ninguém poderia me elucidar…
- Mas, afinal, você quer saber mais? Achei que o assunto te assombrasse… 
- Esquece, você tem razão. A minha curiosidade é menos importante do que a minha integridade.
- E quão certo você está dessa integridade? Para que ela seja tão distinta ela precisa ter sido posta a prova, não?
- Pois esta já não é prova suficiente? Quantos de nós resistem às suas promessas? Quantos de nós não têm perguntas para lhes fazer? Se eu anunciasse a sua presença em voz alta, quanto tempo demoraria para que os fanáticos e desesperados logo se acumulassem ao seu redor?
- Mas não sabes que nós sabemos para quem aparecemos? Não é qualquer memória que nos serve. Muitas não nos apetecem, outras tantas nem serventia têm. Nós sabemos o que queremos.
- As memórias têm gosto? Ou… algum tipo de qualidade específica? O que as distingue?
- Ah, parece que você tem, sim, certa curiosidade. Mas não lhe culpo, é uma circunstância extraordinária. E, como eu disse, não são todos que têm essa oportunidade.
- Perdoe-me se estiver sendo intrusivo. E me dispense assim que a minha presença for um incomodo. Como eu já disse anteriormente, não tem nada que eu queira de você e só o que desejo é não contrair nenhum laço. Portanto, se minhas perguntas imputarem qualquer dívida, não as responda e me despeça.
- Calma criança, não lhe cobrarei por uns minutos do seu tempo e nem por algumas palavras a mais do que são ditas por aí. Afinal, fui eu quem apareci para ti. E entabulei essa conversa que muito tem me divertido… Bem, você pergunta sobre o sabor das memórias e, sim, elas podem ser doces ou amargas. Mas seus atributos não se resumem às percepções sensoriais. A  memória está impregnada das emoções do indivíduo que as registrou naquele momento. Elas podem, sim, ser reviradas e alteradas na mente. Podem se tornar agridoces ou amargas para quem as relembra, mas a sua essência é a do momento do registro. Em suma, o arquivo original, a matriz - que é complexa o suficiente para caber toda a gama de emoções, e sabores, e interpretações que se pode imaginar. Aliás, eu não teria como descrever a amplitude desse produto, mas basta você entender que é um recursos, e que vocês não o sabem utilizar muito bem. Vocês os processam linearmente, e só conseguem atribuir uma função por vez uma única interpretação que precisa ser lógica e coesa, que precisa ornar com o seu contexto interno e com todas as referências que vocês elegeram enviesadamente. 
- Você quer dizer que não sabemos usar nossas memórias?
- Sim. Que vocês aplicam filtros sobre elas, as limitam e as flexionam, de tal maneira que ficam reduzidas a uma função mínima e muito específica de validação de eventos e de manutenção da realidade consensual. Que desperdício…
- Esse é o motivo pelo qual vocês, Fabricantes de Sonhos, estão atrás de nossas memórias? Por que não sabemos usar de seu potencial?
- É a primeira vez que você se refere a mim dessa forma!
- Isso é um problema?
- Não, é um deleite ouvir da sua boca. Dá a dimensão correta do nosso diálogo e evidencia o meu papel. Mas veja: você se engana de pensar que nós estamos atrás das memórias de vocês.
- Mas não é isso que vocês pedem em troca?
- Sim, é a nossa moeda, o tempo. Mas nós não buscamos lucro. Nós não precisamos disso. Essa é apenas a matéria prima para a produção dos sonhos. Mas não é a nossa motivação.
- Não? Então qual seria?
A nossa motivação é fabricar os sonhos. O tempo é só o preço.
Mas porquê?
- Por que vocês são feitos de puro potencial, e quase nunca exercem a si mesmos. Nem sequer se dão conta disso, tão ignorantes são acerca de si. Sua alienação orbita em torno de hipóteses imaginadas, sonhos reticentes que lhes apartam da realidade. E uma forma de cessar a angústia que é assistir seu desperdício ostensivo é lhes oferecer a possibilidade de viver os sonhos com os quais sua imaginação se compraz. Assim vocês se realizam em suas fantasias e mitigam parte de nosso sofrimento.
Eu nunca pensei em vocês como… seres… que sofressem. Mas eu tenho que complementar a sua fala: o indivíduo que conclui a transação, que de fato troca suas memórias por sonhos, ele não assina um atestado de incompetência? Não é esse o sonho mais artificial possível? Não é essa uma maldição que pesará sobre seus ombros e diante dos olhos de todos os que os cercam?
- Essa é uma forma de ver as coisas…
- E existe outra?
- Nós entendemos que quem negocia sua memória não tem dignidade para manifestar qualquer vontade. Por isso lhes concedemos os sonhos, como prêmio de consolação. Em última instância esses indivíduos não têm qualquer valor, e estariam perdidos em qualquer circunstância. 
Então você está me dizendo que toda transação bem sucedida junto a vocês é uma perdição?
Não para vocês que recusam as ofertas. Para vocês pode ser um choque de realidade, mas torna as coisas mais claras…
- …
- Antes de eu partir, deixe-me lhe dar um conselho: não comente sobre esse diálogo. com ninguém. Não fale de nós. Não por medo, que isso não leva a nada…! mas por discrição mesmo. A partir de hoje você tem olhos mais apurados para enxergar as motivações das pessoas. E quem fala demais certamente atrai para si oportunidades estranhas -
que nem sempre são bem aventuradas.
- Você entendeu bem!
- Eu agradeço pelos ensinamentos, senhora.
- E eu pela recepção. Foi divertido. Passar bem.

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