A Satisfação Plena Não Conhece o Revés


- Cessaram os monólogos?
- Você duvida de mim?
- Por que a pergunta?
- Pelo termo "monólogo".
- Ah.
- Não é porque conversamos em pensamento que eu não seja uma consciência autônoma. Aliás, quantos pensamentos são mesmo seus? E os que não são, que querem dizer?
- Legião.
- É o que são vocês todos.
- É o que somos todos.
- Veja que o paradoxo da diluição de si inclui, em primeiro lugar, a conquista da individualidade. Mas eis a ironia: nesse mundo de individualismo quantos de vocês sabem delimitarem-se? Quantos de vocês, neste culto à independência, realmente estão emancipados?
- Mas o que é a emancipação do espírito em meio a interdependência cósmica? Qual é essa conquista de individualidade quando o que somos é uma equação de tudo o que nos cerca, quando mal enxergamos o complexo emaranhado de influências que nos envolve?
- Pois tal é a sua condição. E não se engane rapaz, sempre foi assim. O homem sempre foi cego de si porque só pode compreender-se por meio do outro, mas nunca se dedicou a tal. Vocês costumam chamar esse modelo de percepção de ALTERIDADE.
- Mas por quê não olhamos ao outro? Por egoismo?
- Também. Mas também por inocência.
- Como?
- Quando são felizes e não o sabem sê-los. A percepção se limita pelo desconhecimento da dor, não há oposto para se contrastar, portanto não existe empatia por que o outro percebe sempre da mesma forma que você: não há nada além disso. A inconsciência do ideal subsiste desde antes da Queda, o velho paraíso. É essa pureza de experiências, essa inocência que atesta: a satisfação plena não conhece o revés.
- O egoísmo, então, é fruto da pureza?
- De forma alguma. Ambos têm suas raízes no homem que não é consciente de si, mas a pureza é a virtude do vazio e o egoísmo é o vício do cheio. E vocês têm se entupido cada vez mais.
- Então a conquista da individualidade que você menciona é o equivalente a esvaziar-se?
- Exatamente. Atingir a vacuidade e controlar todas as influências que lhe permeia. Estar ciente de cada partícula de si, equilibrar a equação, centrar-se.
- E os demais em relação a nós?
- Você é o outro e o outro é você e rearranjar-se, ou seja, resolver este quebra cabeça, implica em organizar suas relações e as suas situações inconclusas. Então pode parecer que o processo de conquista da individualidade conduza à separação, e conduz!, mas à separação do denso, do efêmero, das inverdades que se instalam em vocês. Esse processo de destruição da ilusão é o processo de união com o Eterno. É por isso que o místico, no cume de suas vivências, passa a enxergar Deus em tudo: ele reconcilia cada parte de suas experiências ao ápice e dilui-se em êxtase.
- E depois?
- Depois ele volta a enxergar tudo como exatamente É. Mas não é mais o mesmo.
- Como não?
- Assim.
- É isso a Iluminação?
- Pode-se chamar assim. 
- Qual é o propósito de iluminar-se?
- Não ter propósitos.
- É por isso que se iluminam?
- Iluminam-se por inevitabilidade. A saciedade sincera serena os anseios. Cessam-se os propósitos naturalmente; este é um meio e um fim em si mesmo. O apego também conduz ao desapego. Tudo o faz.
- Então por inércia eu transcendo?
- Se você aprender a não resistir, sim. 
- Como eu paro de resistir?
- Você pode começar pelo silêncio.

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