Câmbio, desligo.
Papai me ensinou a guardar as moedas desde pequeno. Ele dizia que eu ainda teria muito tempo para ganhar dinheiro, mas que aquelas pratinhas ali eram únicas e é por isso que reluziam tanto. Ele estava certo, seus reflexos enchiam meus olhos e o tilintar que elas faziam era o meu barulho predileto.
Nós tínhamos um cofre conjunto, eu e ele, e todos os dias eu o esperava chegar do trabalho, com seu bolso cheio, para eu depositar na fresta estreita o que para ele eram sobras e para mim eram sonhos. Então nós balançávamos bem, para escutar o som prateado e cada um chutava um valor. O cofre vivia trancado. Só o abríamos juntos, e assim meu pai me ensinava a fazer as contas. O dono do palpite mais próximo ganhava a honra de poder guardar a chave consigo até o mês seguinte.
Sempre que meu pai ganhava eu passava os dias pensando onde ele a tinha colocado e se ele era um bom guardião de chaves. Imaginava mil e um lugares onde ela poderia estar e também onde eu a esconderia quando a tivesse comigo novamente. Aquela era uma chave especial para mim, era o meu primeiro sinal de conquista de respeito e eu sentia que tendo ela eu tinha o mundo.
Um dia meu pai chegou do serviço com uma surpresa. Seu bolso estava carregado e ele mandou me chamar até o cofre. Fui e o encontrei com um sorriso diferente no rosto, um ar de mistério que logo pressenti e me animei. Metendo a mão nas moedas, foi me dando uma a uma para que eu as depositasse e eu o fazia, cada vez mais feliz com aquela pequena fortuna que colocava para dentro. Quando acabou eu só pensava no peso do cofre, em levantá-lo e experimentar o tanto que poupamos. Estava ficando forte, meu velho dizia, referindo-se tanto às moedas quanto a mim.
Eu estava entretido manuseando o cofre quando pai pigarreou, me chamando a atenção. Olhei-o e ele tinha uma última moeda nas mãos e aquele sorriso enigmático. Estendeu-a para mim, mas não soltou quando a segurei. Fitou-me profundamente e me disse que aquela era diferente, que eu não a devia depositar, mas guardar com muito cuidado em outro lugar e preservá-la sempre comigo como um presente especial.
Era uma moeda estrangeira! Eu nunca havia visto uma daquelas e fiquei muito empolgado analisando a cunhagem, os desenhos, escritos e até o ano que datava um pouco depois do meu nascimento. Deslumbrado eu só pensava que tinha algo que nenhum de meus amigos jamais vira e que aquela era a peça chave de minha coleção. Eu brincava com ela por entre os dedos e sentia a textura do baixo relevo, a temperatura do metal. Era uma moeda já velha e um pouco suja e isso alimentava minha imaginação. Por onde ela devia ter passado? Nas mãos de quem já devia ter pousado? Eu estava muito contente com aquilo tudo, mas em meio às minhas fantasias eu comecei a me dar conta de que deveriam haver muitas outras daquela por aí... muitas, muitas outras.
Então algo aconteceu: eu percebi que talvez houvessem moedas de tamanhos, cores e formatos que eu jamais havia imaginado. Poderiam haver moedas de valores que eu nem sequer conhecia e com desenhos de rostos de reis, imperadores, políticos, ou então palácios, monumentos, cartões-postais, símbolos, coisas que eu nem conhecia, mas que muito já ouvira falar sobre. Tudo aquilo poderia existir e eu sequer entendia o que isso significava.
Toda esta gama de possibilidades começou a me angustiar gratuitamente. De uma certa maneira, eu me sentia traído pelo mundo, ou por mim mesmo, eu não sabia. A vastidão, que eu fora incapaz de supor, consumia meus pensamentos e eu estava experimentando a minha primeira desilusão, uma espécie de frustração com uma realidade que não era a minha. O misto de sensações inéditas e repentinas embrulhou meu estômago e, diante de meu pai e de todo o meu mundinho, meu querido mundinho, eu vomitei a decepção.
Papai ficou preocupado. Limpou-me, deitou-me na cama e beijou minha testa. Colocou a moedinha no criado mudo, na cabeceira da cama para que eu tivesse bons sonhos. Eu era um fracassado. Fechei os olhos com vergonha do que tinha se passado e demorei para conseguir dormir. Eu era medíocre, e só tinha dez anos de idade.
Depois daquela noite eu nunca mais fui o mesmo. Passou a desilusão, mas também o entusiasmo. Eu continuava a juntar as moedas com meu pai, mas já não via graça em disputar a chave ou balançar o cofre. Foi a época em que comecei a me sentir desconfortável em casa. Eu ainda era novo, mas sentia necessidade de desbravar o mundo, uma sede que me oprimia. Minha moeda bárbara, como eu passei a chamá-la, só me fazia lembrar que o que eu sabia da vida era muito pouco, quase nada.
A minha pré-adolescência foi toda pautada em acumular dinheiros e pesquisar novas moedas, seus valores, suas localidades e particularidades. Todos apostavam que eu seria um exímio economista, mas eu já não gostava de apostas, especulações e palpites. Eu só queria viajar e conhecer países, cidades, cartões-postais pessoalmente. Queria visitar o verso das moedas, entender a história das caras e das coroas que compuseram a minha infância e hoje estavam trancadas num baú de memórias.
Já juntava algum dinheiro de pequenos serviços que prestava na vizinhança e pouco depois de fazer 17 anos meu pai consentiu, meio triste, em quebrar o cofre e depositar a quantia em uma poupança para mim. Agora eu tinha um cofre só meu e eu o enchia aos poucos, pensando nas viagens que eu faria. Papai sabia que o que eu mais queria era conhecer o mundo. Mas ele sabia também que parte dessa ânsia era deixar tudo aquilo para trás. Eu não sei se ele entendia, ou se ele se perguntava onde ele tinha errado. Não sei se ele se arrependeu de ter me dado aquela moeda bárbara ou se ele se conformou. Não sei o que ele disse para a família quando eu parti, e nem sei a reação de cada um. Talvez as coisas não precisassem ser assim, cheias de borboletas na barriga...
Esses dias eu estava aqui, passando no caixa de uma loja de conveniências, na cidade que eu sempre sonhara conhecer, a traseira de tantas moedas que eu já juntara. Faltava alguns trocados para inteirar a compra e ao olhar na carteira avistei a moeda que meu pai tinha me dado. Afinal eu estava ali, e ela era perfeita para a ocasião. Cheguei a tirá-la de seu compartimento, mas não paguei. Desculpei-me, desisti da compra e saí do lugar. Naquele momento eu entendi todo o amor de meu pai. E doeu um pouco mais do que qualquer desilusão infantil.
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