Colcha de Retalhos
Eu sempre
soube de algo que nunca ousei mencionar. E do receio do verbo adveio o
esquecimento. O esquecimento é como a morte: auto persuasão, confecção de
finais, adulteração da realidade objetiva.
Por mais
que Verita me alertasse, e ela tinha essa mania indelicada de zumbir em minhas
cabeças como quem fala, fala, fala e nunca diz nada, eu a ignorava por
completo. Em partes, por que de fato eu achava que ela não dizia nada, e seu
zumbido era irritante, e já tão baixo, que eu não me dava o trabalho de
procurar entendê-la. Em contrapartida, eu estava gostando da sensação de sentir-me
Maya, tecelã, encoberto de mil-e-um véus e à vontade para me esconder das luzes.
Verita era
minha conselheira e eu não me desgarrava dela por um minuto que fosse, ainda
que naquelas épocas eu não estivesse muito interessado em suas recomendações.
Eu andava colecionando trapos e juntando-os à minha colcha de retalhos, e ela
tinha pra mim toda a sua reprovação no olhar. Quanto mais remendos eu adquiria,
mais rouca Verita se tornava e, apesar de amável e doce, ela chegou a ameaçar
nunca mais dirigir-me uma palavra. Eu não me preocupei com a sua ameaça, pois
sabia que ela não podia se calar, mas o volume de sua voz cada vez mais diminuto
era algo a me inquietar.
Eu não sei
explicar qual é a sensação de ignorar-se. Provavelmente todos a conhecem bem. Quando
se está cego nunca se está errado e as responsabilidades nos evitam de tal
maneira que não temos de quê nos queixar, senão dos demais. A cegueira faz-nos
detentores de conhecimentos que nunca estudamos e portadores de razões inabaláveis,
concede-nos autoridade e rigor, e ainda uma ligeira surdez, que é bem
confortável por amenizar as loucuras que escutamos por aí. A minha vida tinha
se tornado simples e pacata, e é claro que eu estava chateado com a situação de
Verita, mas não havia motivo para aquilo ser um incômodo monumental. Essas
coisas acontecem.
Certo dia eu
conversava com um senhor religioso que me ofertava com muita estima um novo
lenço. Eu não vi quando Verita caiu ao meu lado, tal era o meu interesse
naquele retalho. O lenço era um trapo, mas me era inédito e integraria minha
coleção de todo jeito. Mas enquanto conversávamos animados, eu notei o silêncio
opressor a me incomodar, digno de fatalidades: o trem desgovernado descarrilha.
Olhei aos lados procurando por Verita e lá estava minha miúda consciência, estatelada
ao chão e desacordada. Pedi licença ao senhor que nada compreendeu, e parti
para acudi-la e reanima-la. As coisas ficaram estranhas.
Verita demorou
a se recuperar. Passou três dias sem voz alguma, tentava falar, mas não emitia
qualquer som. Estava quieta, introspectiva, um tanto mudada. Eu me sentia
culpado pela situação. De alguma forma eu sabia que a minha postura vinha a
incomodando. Eu não estava sendo um bom companheiro. Os meus pedidos de perdão
foram aceitos, mas a indiferença com que passara a me tratar fazia com que eu me sentir
abandonado. Eu já não me sentia confortável em viver circundado em meus véus e
me ocorreu um pensamento de que talvez não fosse Verita quem estava
emudecendo-se, mas eu quem ensurdecia cada vez mais. De fato era.
Demorei
muito para escutar Verita. Demorei para perceber que minha consciência não
estava amordaçada, mas o meu conforto barato era o regulador das realidades. Os
véus em que eu me enrolava acabavam por me sufocar e a minha percepção
viciava-se em lógicas óbvias e previsíveis. A minha coleção de dogmas demorou a
ser desfeita. Estive em recuperação após os agravos que cometi contra mim. Quando
pude enfim conversar com Verita eu lhe dei a atenção devida, e não as migalhas
que costumava dispensar. Foi quando ela me falou do desapego e de como os
homens precisam enrolarem-se para sentirem-se seguros. Foi quando eu me senti
ingrato e injusto.
Acabei
lembrando do segredo de quando eu era pequeno:
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