Aurora


- Chovem flores e nem assim...
- Como?
- Me desculpe senhor, acho que eu pensei alto!
- Às vezes não podemos nos conter, não é?
- Eu me distraio facilmente...
- Por isso ser tão amena, menina!
- Já nos conhecemos?
- Acredito que não, mas os seus olhos me são tão familiares que me dão dúvidas.
- Que têm meus olhos?
- Você sorri com eles. De uma simpatia tão transparente que me transporta para outras épocas. Ah, que bela forma de se ver o mundo!
- Obrigada, eu acho...
- São bonitas, não são?
- Você também vê as flores?
- Sim filha, eu vejo.
- Então não é tão mal quanto eu pensava.
- Eu?
- Não! Você é muito gentil, senhor.
- O quê é então?
- A minha vista. Quero dizer, outras pessoas também veem o que eu vejo, então isso é bom.
- As pessoas olham. Ver é diferente.
- Como assim?
- Filha, existem dois tipos de palavras: as que nos fogem à memória e as que nos escapam pela boca.
- E?
- Em ambos os casos queremos dizer algo avidamente.
- Eu acho que eu nunca parei para pensar nisso.
- Pois você falava sobre as flores quando eu te interrompi pela primeira vez...
- O senhor já parou para pensar no que seria do inverno sem a florescência dos ipês? Como é que as pessoas podem passar pela praça sem se deterem a admirar o espetáculo que é a vida? Eu não consigo lidar com a ideia de ter que viver rápido, eu preciso sentir o mundo e para isso eu levo tempo. Eu desdobro cada camada e a sinto junto a mim, você entende?
- Assim é o Ver.
- Eu sou uma. Como poderiam indicar-me, narrarem-me o que há para ser visto se eu não vejo distinção entre as partes? Eu não consigo enxergar a observação senão como um processo de autoanálise. Eis o ipê a florescer, toda a maternidade e maturação. Eis-me então: menina, mãe e anciã, una mas não única; plural como me couber, até que eu me estenda e me entenda como Todo. Eu, que gesto o mundo, minha morada iluminada.
- A união como ápice da percepção. Ver é participar do êxtase divino. Um Sol para cada ventre, e cada mãe é uma constelação. O universo desdobrado em cada átomo resplandece aos olhos de quem se permite.
- E como pode haver desinteresse? Apatia é rigidez. Todo ato de resistência é uma demonstração de entropia existencial. Da mesma forma, todo estímulo externo que nos conduza a estados de consciência, prazerosos ou não, aparta-nos de nós mesmos e amputa-nos do mundo.
- Às vezes, filha, elegemos as vias mais difíceis por não podermos compreender a simplicidade da vida.
- Quando o que nos resta é permitirmo-nos e ainda assim falseamos em verdades unilaterais... Quantos são os que têm como dogma a própria liberdade e reafirmam-na ao mundo presos a tal ilusão? O exterior ilustra o interior, o liberto é notável!
- E não por que demonstre apenas beleza – pois a possui, em todos os parâmetros e com toda a subjetividade que lhe é devida –, mas por desmerecer as comparações a ponto de ser único e assim reconciliar-se com Deus. Esta é a estética da qual tratamos aqui: a luminosidade sobre a cabeça dos deserdados, a canonização do simples, pois é íntegro.
- O Belo como resultado palpável da sutilização dos sentidos. Transpessoal, intransferível e inefável; mas reconhecível e evidente.
- Eis o véu. Há o Abismo. E por trás das cortinas não há tragédia ou comédia, senão o espetáculo indistinto e indefinido ao infinito.
- É como a flor que cai da árvore.
- A tarde se estende por toda a eternidade. E as pessoas vêm e vão...

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