Pastoreio
- Da onde você acha que estas vêm?
- As balas?
- Não, não as balas. As estrelas...
- Hm, não faço ideia. Longe. Talvez. Ei, posso
pegar uma?
- Claro, tem muita aí. É para o meu irmão mais
novo.
- Ele deve gostar bastante.
- É a única coisa que o desacelera, então minha mãe
sempre me pede para comprar vários sacos.
- E funciona?
- Ele fica de boca cheia, então, bem, funciona. Por
um tempo...
- É uma pena meu avô não gostar de balas.
- Por quê? Ele conta muitos casos?
- Quem dera. Ele reclama demais, de tudo.
- Sinto muito.
- Não sinta, é problema dele.
- Nem sempre a gente pode ajudar, não é?
- Pois é. Mas os doces seriam ótimos!
- Pelo menos ele já passou da fase de cáries.
- Pois a dentadura cede à diabetes.
- Tem isso. Meu irmão pelo menos escova bem os
dentes.
- É um bom garoto, não vai ter do que reclamar
quando crescer. Vocês ensinam da forma mais doce possível a preciosidade do
silêncio.
- É... Há quem diga que é adestramento.
- Bobagem, ninguém pode adestrar o outro ao
silêncio. O silêncio sincero é uma conquista.
- Acho que você tem razão. Então, sobre o que seu
avô reclama?
- Bem, principalmente sobre a nossa geração. O
resto do tempo ele repete o noticiário.
- O que ele diz sobre a gente?
- Ele fala que nós vivemos a vida muito rápido e
que por isso a gente não pensa direito no que faz e que é por isso que o mundo
está estragado.
- Ele acha que o mundo está ruim?
- Acha.
- E ele acha que na época dele as coisas eram
melhores?
- Bem, não exatamente. Na verdade, para ele nunca
nada esteve bom. Ele é o que eu chamo de ovelha desgarrada.
- Ovelha desgarrada?
- É, por que as coisas seriam melhores do jeito
dele sempre.
- Eu conheço um bocado de gente assim.
- Memória emoldurada em ouro.
- Minha mãe me disse para aproveitar muito
"a-melhor-fase-da-minha-vida". Às vezes eu fico triste, acho
medíocre, sei lá. Fico pensando se o tempo denigre as coisas.
- Meu avô se sente assim o tempo todo, mas não é
nostalgia.
- Não?
- Não, é outra coisa. Ter a memória emoldurada em
ouro é como ter orgulho do brilho fácil, sabe como é?
- É como se... a mente só forjasse metais caros por
que é o que paga o custo da ilusão. É bem isso, não é?
- Sim, é bem isso. É como eu costumo dizer: o Sol
nasceu para todos, mas há os relutantes.
- Por isso tanta gente cabisbaixa.
- Isso! Sabe? Eu acho que você é capaz ver o
pastoreio! Eu posso tentar te mostrar, que tal?
- Como assim?
- Bem, eu acho que a vida inteira se resume a uma
única escolha.
- E qual seria ela?
- Decidir se o resto do mundo está contra você ou a
seu favor. Supondo, é claro, que você superou o existencialismo.
- Faz sentido, mesmo por que quem se detém em sua
própria relevância acaba por optar em repreender-se.
- Exatamente. O sábio questiona-se com cautela, o
tolo conduz-se por curiosidade; Um enternece-se, o outro escarnece-se.
- Poético.
- Sabe, "O resto do mundo” é real. Ele sempre
vai existir, mesmo que Ele seja você próprio, "apenas".
- As mais sofríveis desavenças são as que temos com
o espelho, que não conduzem à nada, mas entristecem duplamente.
- Pois aí é que está! Sozinho à dois! Antes nos
levassem ao Nada! Mas é exatamente essa a questão: não divergir-se de si, pelo
contrário. O movimento é de conversão, a confraternização última. A vida diz respeito
a aceitar-se, a aceitar-nos e, portanto, fundir-nos e difundir-nos! É muito
simples, todos os filmes falam disso, todos os livros, todas as histórias,
todos os sonhos, toda utopia baseia-se no princípio do amor, algumas, além, no
amor universal.
- Belo!
- Sorri o espelho e contagia-nos! A linha exclama e
o sorriso se desprende, atreve-se, altera o rosto e acerta uma flecha de cúpido
em algum destemido que passava por ali. Destemido! Ai de quem receia amar! Ai
de quem se dá em migalhas! Medo de quê?! Tudo é permitido! Arrisco ainda um
palpite, amigo: tudo o que se opõe é ilegítimo! Todo refreio é um desperdício!
Toda resistência é dúbia, posta ser reflexo e não origem! Toda crítica é uma
paráfrase, mas o que são reinterpretações perante a ausência de limites
daqueles que se têm e daqueles que se dão? Uma hora ou outra esbarramos no
horizonte, nos diluímos em luz e, infinito por infinito, mais um ponto em
reticências...
- Oh!
- Que foi?!
- É como se a vida terminasse logo ali. Falando
assim tudo parece fazer sentido.
- Mas sempre fez!
- É, mas faz muito tempo que eu não sinto a
sensação de 'fazer sentido'. Sabe como é?
- Sei. E como eu sei...
- É uma sinestesia incrível.
- É como comer uma dessas balas.
- É como comer uma dessas balas e ver a si próprio
pequeno, degustando o mundo com os olhos, em êxtase.
- Todos os singelos presentes que nos eram
caríssimos, as dádivas, a gratidão.
- Tudo é raro quando não somos escassos...
- Mas somos. Certo? O sentido se ausenta, não é? Às
vezes nos damos conta de que a satisfação que sentíamos momentos atrás já não
nos resta, mas sim um vazio.
- Sim...
- Posso... pegar mais uma bala?
- Vá em frente, fique à vontade!
- São as minhas preferidas!
- Quaisquer balas que aí estivessem seriam suas
preferidas.
- Isso é por que você é gentil!
- Preferir alguma coisa é evidenciá-la. Mas e se
tudo fosse perfeito? Como poderíamos distinguir os gostos, as sensações?
- Eu prefiro não preferir, assim eu estou sempre a
fazer o que eu prefiro.
- "Tudo está bem"
- Exato!
- Toda essa simplicidade me fascina. E é como você
disse: está em tudo, todos os contos e fábulas em que já pus os olhos, todas as
escolhas pelas quais decidi, todas as situações que vivenciei até hoje. Sempre
foi apenas questão de aceitar as coisas como elas se dispunham à mim.
- O simples é volátil.
- E nós, sólidos, tendemos ao complexo.
- Quantas vezes você leu o mesmo livro para
vivenciar situações diferentes? Quantas vezes você leu a história da sua vida
nas linhas ali escritas? Quantas vezes você se projeta nos roteiros alheios?
Incorpora personagens, delega funções e vivencia seus diálogos, maculando a sua
percepção da história? Sabe, as pessoas devoram os livros mas não os absorvem,
por que tudo que leem são suas próprias biografias, sob uma nova perspectiva.
- É por isso que é difícil enxergar o simples?
- Sim, talvez. Muita gente fica perdida no
chuviscar após o filme.
- Como assim?
- Sabe, nós também temos sempre a outra opção.
- Qual?
- Imaginar a vida não nos conduzindo a lugar
nenhum. Sem propósitos e sem que alguém te deva explicações por coisa alguma.
Aqui a utopia existe como alento à alma que nunca a verá, e esse é também é o
papel das produções e de tudo que nasce de nosso tempo livre: distrair-nos do fim
iminente.
- Tudo foge ao destino certo. O tempo como
opressor.
- São as filas de espera, lugar-comum.
- As revistas, os jornais, uma televisão ligada
sempre no mesmo canal e uma recepcionista guardando a porta atrás dela. O tédio
assombra a sala.
- Imagine uma vida de sonhos escuros, sono difícil
e criatividade fugaz; a imaginação cede ao túmulo, a vida desencanta-se em
insônia.
- Uma espécie de entropia apática.
- Tão desinteressante que nem conjecturamos sobre o
propósito das coisas. Nada importa pois tudo está danado. A vida esvai-se sem
nada em troca.
- Nesse caso, eu posso fazer o que eu quiser?
- Isso sob a perspectiva de autodestruição, certo?
"Tudo é uma droga, não há nada para me coagir e eu necessito de atenção,
então eu vou pôr fogo na cidade."
- É, parece isso mesmo.
- Eu o chamo de Paradoxo da Neurose Sustentável: a
vida opõe-se à arte e a arte opõe-se a vida, mas elas são dependentes e copulam
sobre o medo. É o medo que põe fogo na cidade e é também o medo que critica
tudo e fala das gerações mais novas sem poder acompanhá-las. Isso não é inveja
da juventude, é pesar de si próprio. É dar-se conta deste fim iminente que
escolheu para si próprio ainda novo e conviver com o peso dele nas costas por
anos a fio. Definhar.
- Morte por antecipação.
- o Tédio é o Medo enrustido.
- Ahm?
- Pense no arquétipo da criança entediada. Sabe por
que a criança chora diante de seu mundo de possibilidades infinitas?
- Não... por quê?
- Porque ela não sabe o que ela quer. E ela tem
tantas opções, e cada opção é uma dúvida nova, que ela não consegue escolher um
brinquedo para se distrair. Então ela chora por medo de escolher errado, por
que ela quer a melhor opção e depois de escolher ela sabe que não poderá voltar
atrás.
- E qual é a solução? Quando a criança pára de
chorar?
- Quando ela se decide.
- E se ela não conseguir decidir?
- Então a Mãe aparece para lhe socorrer.
- E?
- E o processo se adia. Sabe, o ponto da história é
que qualquer brinquedo escolhido conduziria a criança ao êxtase, mas o impasse
a conduz à tensão e ao desespero.
- A mãe é a salvaguarda.
- É, a Mãe é uma metáfora. A criança somos sempre
nós, mas a Mãe se apresenta de inúmeras maneiras. O que você precisa entender
sobre o papel da Mãe é que o lamento do filho também ofusca a felicidade dela,
e o alento desta só se dá quando o filho é capaz de realizar-se sem suas
intervenções.
- Seria a maturidade.
- O caso é que medimos maturidade pelo tempo, o que
não é nem um pouco preciso.
- O que acontece se nós nunca nos decidirmos?
- Bem, não escolher já é escolher, não é? O impasse
é a causa de todos os traumas que eu conheço.
- Faz sentido, você tem razão. Então, não há
exatamente uma escolha não é?
- Por quê você diz isso?
- Por que o ato de recusa é o ato de entrega. É
proclamar-se incapaz, sentenciar-se à infelicidade.
- Exato. A vida é maleável e doce com aqueles que
se têm abertos às suas manifestações, mas é dura e implacável àqueles que são
obstáculos em seu fluir. Não há outro caminho senão a resignação amorosa. É
inevitável que assim seja. O trabalho é voluntarioso.
- A aceitação como processo ativo.
- Muitos confundem com submissão. Estes ainda não
se deram conta de sua condição central no enredo. A meu ver, se a existência
não é realização ela é apenas um mal exemplo.
- E o seu avô?
- Quer ir um dia lá em casa conhecer a peça?
- Eu adoraria! Do que acha que ele vai falar
comigo?
- O tema é irrelevante. Tudo o que ele diz é sobre
si próprio, mas ele não se dá conta disso. A magnificência com que ele trata a
sua renúncia e como ele se deteve incapaz ao seu Pequeno-Abismo particular...
Ele está lá até hoje, desgarrado, e brada isso para todos. Você vai ver, ele
vai te encantar com tanta amargura e pesar e vai te convidar a lamentar sobre o
mundo. Vai ser uma tarde legal, vou comprar vários sacos dessas balas. Quem
sabe você oferecendo ele não aceite... Vamos tentar não é mesmo? O que temos a
perder, afinal?!
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