Especiarias & Expiações


- Eu não vou mais voltar aqui.
- Conseguiste um emprego decente?
- Não, mas vou escrever a minha história.
- Tem cuidado, meu filho. A procrastinação é a maldição da vossa geração.
- Agora que terei tempo livre não acho que sofra desse mal.
- Pois é aí que te enganas. Tempo é como o sono: quanto mais tens, menos tens.
- Esse é o seu “boa sorte”?
- Eu tenho as minhas maneiras de falar-te dos anseios que tomam o meu coração.
- Quão comovente!
- Não sejas frio, meu jovem. Talvez tenhas tuas divergências, mas é com o teu patrão e não com a pessoa que agora fala-te.
- O senhor tem razão, eu não quis ser rude.
- Por muito tempo foste parte de minha família, estando no íntimo de minha rotina. Não vejo uma forma de estar mais próximo de alguém e por isso quero dizer-te que a tua partida nos alivia. Mas também nos preocupa um bocado.
- E por que razão?
- O alívio é parte de ver um próximo atirar-se ao seu sonho. Essa é a parte bela da vida, é o que nos enche os olhos e nos faz continuar o sonho que escolhemos para nós.
- Qual sonho você escolheu? Uma loja de quinquilharias no centro da cidade?
- Eu escolhi a humildade, o primeiro caminho em direção ao Sol, e não me incomoda ser incompreensível. Penso que se agradasse a todos não seria o meu caminho.
- Peço perdão...
- Esqueça o perdão, pois é tempo perdido. A mim, pelo menos, nunca precisarás se perdoar pois tuas palavras não me ofendem. Repara, no entanto, que a palavra proferida ecoa ao infinito e, para quem vai escrever a própria história, é bom saber que os erros te acompanharão até o ponto final.
- Eu já pensei sobre isso...
- Meu filho, entenda que não te maldigo, senão abençoo-te. Assumir teus erros é a única forma de vivenciar teus sonhos, portanto esteja em dia contigo mesmo. Nós nos acostumamos a viver pelo martírio, aprenda a perdoar-te.
- Eu me sinto deveras ingrato. Talvez esse humor ruim que se apossa de mim seja fruto de minha impetuosidade.
- Não fales besteira, o ímpeto não floresce. O fruto é resultado do semeio, do cultivo, do emprego da paciência. Não se pode colher ingratidão ou mau-humor de uma árvore fecundada. Atribuir efeitos indesejáveis a causas imaginárias é depositar a honestidade longe de ti. Se te sentes ingrato, agradece; se o humor te persegue, sorri.
- Talvez me falte simplicidade.
- Talvez te falte divindade. É esse o propósito em ser humilde: reconhecer-te.
- Pois não mais se aflija comigo, sei o que buscar.
- Tens razão em pensar que a minha preocupação, sim, seja uma maldição. Os pensamentos dos outros sobre nós são estorvantes e contaminam nossos atos, pervertem nossas obras, desafiam nossa honra. Mas tu serias um covarde se fugisses da cidade para ir viveres só com o teu egoísmo. Qual pretensão, hein? Dirias muito da maledicência do povo se pudesses, mas nunca dobraras tua própria língua, e do silêncio nada sabes. Eis o que me agoniza.
- Uma pitada de silêncio...
- Uma pitada de divindade, ei-lo dito. Para que deixes de fazer listas, pares de pensar em compensações. Aposente tuas soluções instantâneas, credor de favores, fruto baixo da árvore do qual não se necessita qualquer elevação para lambuzar as feições perdidas, como a tua própria! Arrisca-te, filho, a ver o mundo como Deus o vê! Falta-te muita empatia e eis o porquê de tua pequenez. Tua miopia é ser esta mancha que embaça a própria visão, a qual te faz julgar seres grande sem possuíres méritos para tal. Sê pertinente e torna-te o que és para servires satisfeito ao teu propósito. De outra forma o descontentamento é certo e contagioso, e o mundo intolerante com quem se mima com adornos irreais, veste-se de crenças passageiras de raízes breves e galhos tortuosos.
- Ai.
- Ora e vigia, filho, e saberás quão santo é o mundo. Há a candura e há o silêncio. E há a obstinação dos dissonantes...
- Que estes sejam notáveis.

- Eis a Sociedade do Espetáculo. Agora vai! Não semeio pérolas para frutear novelas! Se vais escrever tua história volte-me com uma cosmogonia impecável, de outro modo serás só mais um best-seller. E quão decepcionante seria...

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