IV*
(*) O contexto acabou encorpando-se muito mais do que o esperado, portanto os títulos serão numerações em algarismos romanos. Fascículos anteriores: a conclusão de um capítulo, passagens de uma história nunca escrita & outras passagens.
E nunca ousaram perguntar-lhe
quais as dores e as delícias
de se poder fabricar sonhos.
Mas ele as sabia bem.
E as enumeraria
assim que fosse necessário.
Tudo em seu tempo.
Estraño.
Dúvidas deixam sombras
marcadas. Da mesma forma que o sol do meio dia o faz sobre a pele do
trabalhador rural. E o imaginário popular inquieta-se diante das questões
levantadas em voz baixa. Por que, nas vilas, gritam-se apenas os preços da
feira, que já não interessam a ninguém. E quanto às fofocas, o alvoroço de uma
cidade ávida por compartilhar aquilo que não lhes pertence. Afinal, de fato, o
que é seu é meu, e esta é a lei da selva.
Quando adentrou à
cidadezinha aquela figura inusitada a curiosidade se manifestou instantaneamente
em olhares surpresos e línguas que não podiam ser contidas. Os trapos surrados revelavam o rosto de um
homem velho, de barba grisalha já comprida, e um modo de andar arrastado que
tornava-o ainda mais excêntrico. Ele evitou a multidão e, sem sequer levantar o
olhar, contornou os estabelecimentos para longe dos feirantes. O burburinho característico
recomeçava e agora já tinha um novo assunto.
Passaram-se dois dias desde
que o homem havia chegado à cidadela e a dúvida persistia: a quê viera tal figura?
A população inquietava-se e especulava suas maldades enquanto outros, mais
audaciosos, sondavam o que podiam. O dono da pequena estalagem que abrigava os
viajantes menos abonados recebera o hóspede e com ele, as perguntas acerca de
seus hábitos. Mas homem honesto que era não revelou qualquer segredo, pois
prezava a ética acima de tudo e não se misturava com os porcos hábitos comuns,
como dizia. Foi alvo de ofensas e ameaças, mas estava acostumado e não se
deixou intimidar.
A cidade seguia em seu ritmo
normal em que as pessoas sempre se ocupavam do nada e levavam sua vida lenta e
desprovida de propósitos práticos. As preocupações não lhes pertenciam e talvez
fosse isso que tornasse aquele ambiente amiúde tão agradável, mas, em essência,
inquietantemente estagnado. O viajante recém-chegado, e permaneceria com esse
título por algum tempo, já que a cidade não contava com muitas novidades, havia
perdido alguma popularidade devido ao seu desaparecimento. Já havia mais de um
mês desde sua única aparição pública e muitos já não davam tanta importância ao
caso, querendo fofocar sobre quem se podia ver pelas ruas. Mas também havia sempre quem suscitasse a
questão e promovesse suas lembranças e estórias, dizendo que ele havia ido
embora pela madrugada ou que ele havia morrido no quarto da hospedaria e que o
velho dono não se pronunciou para não espantar a freguesia. Apesar de todas as
maledicências o viajante permanecia hospedado na estalagem, e com o passar do
tempo o povo o foi se esquecendo e suas memórias acabaram por se tornarem uma
espécie de lenda urbana, se muito.
Certo dia uma moça com uma
larga mala de mão cruzou os limites da cidade, despertando a atenção de quem
estava na rua. Muito simpática e ligeiramente desinformada perguntou ao
primeiro que viu ter uma feição prestativa onde se localizava o antiquário pelo
qual aquele lugar era famoso na região. O caso era que o antiquário em questão
havia encerrado suas atividades havia alguns meses e o dono da loja mudara-se
da cidade, deixando apenas um estabelecimento vazio para ser ocupado por quem
quisesse. A moça, desanimada, perguntou por sugestões de lugares em que ela
poderia se hospedar e foi dessa forma que ela acabou por se instalar no quarto
vizinho ao do velho viajante que já mofava na pequena estalagem.
O lugar era inspirador.
Apesar do tamanho dos quartos, a casa possuía um corredor que os reunia e
desembocava numa sala de convívio onde apenas os hóspedes podiam frequentar. No
outro canto havia um pequeno refeitório e uma cozinha, livre para o uso de
todos, e a recepção num cômodo ao lado que tinha as portas para a rua. A moça
logo se sentiu encantada com o lugar e preencheu a última vaga disponível. De
tão satisfeita chegou até a bendizer, em voz alta, o acaso por tê-la levado até
ali. E o velho escutou. E foi quando começaram a conversa que embaralharia algo
mais do que apenas os rumos dos dois.
- A senhorita quer um
conselho?
- Eu?
- É.
- Bem... Claro... Acho que
não seria polido recusar.
- Pois não fique atribuindo
vida às suas escolhas. Você pode acabar perdendo o controle dos eventos que te
acontecem.
- Perdão, eu não sei se eu
te entendi...
- Entendeu. Não chame de
acaso o que é decisão sua. Tínhamos um encontro marcado, essa conversa não é
fruto de meras desventuras.
- Então o senhor está me
dizendo que eu já sabia da falência do antiquário e que vim à cidade
exclusivamente para vê-lo?
- É.
- Com todo o respeito, eu
não sairia de minha cidade só para que o senhor me advertisse sobre acasos e
contratempos.
- Mas não é sobre isso que
vamos conversar. Esse foi só um ponto que me pareceu interessante adverti-la.
- Pois então, qual o assunto
tão importante que me trouxe até aqui?
- O objeto que você veio
buscar. De fato você não sabia do fechamento do antiquário, mas veio buscar
algo e sabia que ia encontrar pistas por aqui. Pois então, eu tenho algumas
direções para você.
- Desculpe-me por todas
essas perguntas e, sim, alguma dose de descrença que possa ter transparecido,
mas como o senhor sabe o que estou buscando?
- Não se desculpe, a gente
demora mesmo para se acostumar com essas situações. Eu não vou me alongar,
serei direto: sei que você não busca um objeto, mas sim uma pessoa. E sei o por
quê de não ter perguntado informações quando soube do fechamento da loja. O
interessante é que eu não vejo tanta decepção em sua feição, mas mais um
contentamento, como se já esperasse por isso.
- Não... Eu não sabia... Mas...
- Talvez você não se desse
conta. Mas, enfim, não me sonde, atenha-se ao necessário, devemos ser sucintos
ao tratar sobre isso. Ele saiu da cidade pouco antes da loja fechar. Parece que
ele sabia das complicações vindouras, voltou para a cidade onde a mãe foi
velada.
- E a loja?
- Fechou. A curiosidade é
traiçoeira. E as paredes por aqui parecem ter mais do que apenas ouvidos.
- Perdão.
- Mas você ainda não está
satisfeita, há algo mais...
- As paredes...
- Entendo.
- Mas acho que te encontrei.
- Sim.
- Eu tenho um sonho.
- Eu sei, falaremos sobre
isso.
- Quando?
- Em breve.
Comentários
Postar um comentário
Comentários?