Ritmo
- Houve uma época em que eu achava que tudo isso era um
grande desperdício...
- Tudo isso o quê? A feira?
- Não só a feira, a vida como um todo. As pessoas, as artes,
o trabalho, tudo. Houve um tempo em que eu não via sentido nas coisas senão em
fazer exatamente o que eu quisesse, da maneira como eu quisesse e no tempo em
que eu bem entendesse. Achava que a vida era muito curta e a última coisa que
eu queria ser era um mártir.
- A inconsequência é o combustível da juventude. Isso é
normal, as grandes personalidades passam por essas turbulências...
- As grandes personalidades são apenas mais um desdobramento
dessa mesma mediocridade. Aliás, só o fato de serem grandes personalidades já é o suficiente para ridicularizá-las,
quando a expressão ingenuamente nos diminui! Penso eu que quem é grande não
subjuga ninguém, muito pelo contrário.
- Eu só quis ser gentil. Você sabe, não há neste mundo que
justifique o remorso...
- De fato. Mas já parou para pensar o quão engraçada a
vergonha é? Cumpre seu papel tanto, por oras, restringindo-nos, quanto, por
outras, impelindo-nos a reviravoltas.
- E os tímidos nunca experimentaram um vexame, isso que é
ironia!
- Pois nessa época eu pensava que as personalidades deviam
ser equilibradas, quase como num comunismo
emocional. E hoje vejo o quanto isso nos tornaria impessoais e,
consequentemente, estáticos.
- Então me conta o destino do garoto niilista com seus
desvairos hedônicos e qual a vergonha que marcou a reviravolta em sua vida.
- Bem, eu era apenas um rapaz que havia se deixado mimar
pela vida. Não que eu tivesse condições de possuir muitas coisas, não foi no
sentido material em que fui mimado, mas no filosófico estritamente. Eu me
chamaria de idiota sem muitos rodeios. Sustentando uma espécie de arrogância
universal, coletiva, um antropocentrismo maquiado de descaso. Eu vivia a minha
existência limitada sem me dar conta de que a mesquinhez amargava o fruto que
tanto me apetecia e do qual eu bem dizia sem de nada desconfiar.
- Mas o amadurecimento é inevitável. E faz com que provemos
novos sabores.
- Ou pelo menos refina nosso gosto. Sim, isso era o que eu
ignorava. Infeliz de mim naquela imobilidade que é superficialmente confortável.
E eu não sabia, não enxergava a evolução inexorável, e por isso me deleitava
vegetativamente. Sabe? A transformação é uma fatalidade cuja resultante é a
liberdade. Mesmo os paradoxos respeitam a impermanência, quem dirá um verme
pretensioso.
- Ei! Não seja tão rude consigo. Agredir o seu passado é
amaldiçoar o seu porvir.
- Perdão, acho que eu me exaltei um pouco! Pois bem, talvez
fosse radical a minha posição e talvez eu soubesse que era diferente dos
demais. Eu me importava com o aproveitamento, eu cultuava o meu livre-arbítrio e eu não achava que as
pessoas comuns pudessem entender a minha posição, até me dar conta de que a
grande maioria da população partilhava das minhas ideias. À medida que isso se
confirmava, o fruto que me era tão prazeroso apodrecia e já não me deleitava.
Foi a primeira vergonha que me fez rever meus hábitos.
- E aqui temos a reviravolta?
- Sim, a primeira delas. Foi quando eu conheci o significado
de responsabilidade social. Ainda
muito teórica, mas já distante do dicionário e dos livros que tentam
decodificar o termo, eu senti o primeiro sabor daquilo que nada mais era do que
uma ramificação da compaixão simples e pura.
- Compaixão diz muito sobre evolução.
- Também sobre grandes
personalidades.
- Acho que eu estou começando a entender a sua história.
Continue, por favor.
- O antropocentrismo
coletivo ao qual eu havia me referido foi começando a se diluir a medida
que eu vislumbrava que a evolução tinha seu ritmo próprio e que eu começava a
marchar em sinergia à ela. Eu começava a entender que a humanidade, em sua
maioria, era arrastada por esse desenvolvimento que era a média entre quem se
esforçava e quem se deixava levar. Finalmente eu começava a me sentir útil,
pensando em como eu poderia auxiliar a sociedade do meu jeito.
- Aí vem a raiz da palavra política, não é? Relacionamentos,
organização, administração...
- Sim. E eu comecei a me envolver tanto com a tal responsabilidade social que eu julgava conhece-la
demasiadamente. Aí vem a época em que eu deixava de ser um arrogante
passivo para me tornar um arrogante ativo, descriminando aqueles que eu não
acreditava acrescentarem à evolução do mundo. Nesses anos, mais precisamente,
foi que eu desacreditei nos demais. Foi a época em que eu era amargo e
desgostava da feira, do trabalho, dos estilos de vida diferentes dos meus e,
principalmente, das ideias opostas.
- Um “revolucionário”.
- Com ênfase nas aspas.
- Claro, só para ser simpático.
- Pois se antes eu era um idiota, agora eu era um chato. E
essas descriminações atuais já deviam ter sido superadas, mas eu as coloco aqui
apenas a título de ilustração da minha pessoa. De forma alguma eu gostaria de causar algum mal-entendido!
- Sim, eu lhe entendo! Só me dói que você criticasse a
feira!
- A feira tinha lá seu papel
social, e era um meio dos proletários sub-existirem, mas era uma atração
estritamente burguesa. Falo no passado, por que essas seriam as minhas palavras
da época. Eu não deixei de pensar isso, apenas não manifesto minha opinião com
desgosto, com o descaso característico.
- E o que houve com o pseudo revolucionário materialista e
prepotente?
- Esbarrou-se com a postura.
Foi quando eu percebi que a responsabilidade
social que eu venerava estava imposta a todo cidadão e participava de todo
ato construtivo, seja no âmbito público ou privado. Foi quando eu percebi que o
cidadão que eu chamava analfabeto político e que era inconsciente de sua
exploração poderia contribuir mais à aclamada evolução do que um mero militante
verborrágico, por que ele fazia jus à sua essência. É claro que eu vi que a
grande maioria estava preocupada apenas consigo mesma e que não havia uma
intenção de revolução ou ao menos de fazer algo pelos demais, mas eu vi que o
desenvolvimento regia seus atos organicamente, mesmo que essa força não fosse do conhecimento deles.
- Como assim? Agora você está colocando Deus na história e
atribuindo-Lhe méritos pela sua redenção? Você se converteu e agora vê
propósito em tudo, aquele fatalismo do qual falávamos há pouco?
- De forma alguma. Quando deparei-me com a postura, eu senti vergonha de tentar ser
o que eu não era. De fato eu me preocupava com os demais mais do que eles
próprios, mas eu fazia um esforço descomunal para manter ideais e eu não estava
me sentindo sincero comigo mesmo. A segunda reviravolta me fez perceber que há
outras formas de atuar na mudança de concepção das pessoas e contribuir com a
evolução sem precisar ser rude, prepotente ou preconceituoso. Foi quando eu
percebi que havia algo que eu podia fazer que se encaixava perfeitamente nas
minhas necessidades e vontades.
- Mas você atribui essa descoberta à providência divina?
Você acha que isso é um sinal de Deus para você e essas coisas?
- Nós não estamos aqui para discutir crenças, e isso foi uma
das coisas que eu aprendi quando deparei-me com a postura, mas como estamos apenas os dois aqui e já nutrimos, eu
presumo, de uma certa intimidade, deixe-me esclarecer-lhe alguns pontos?
- Eu ficaria feliz.
- Se cada uma dessas pessoas da feira se encontrassem no
exato estado de espírito em que eu me sinto, e talvez ele seja indescritível,
mas você pode tentar imaginá-lo, você não acha que a convicção delas em estar
movimentando harmonicamente a engrenagem do desenvolvimento é o suficiente para
supormos que isso é realidade? Eu quero dizer: imagine que nada disso é real e
que a única coisa que importa é o estado de espírito delas. Se todas elas
vibrassem satisfação acho que isso seria o que a gente chamou de responsabilidade social, não é?
- Sem dúvida alguma.
- Acho que o livre-arbítrio se refere muito mais às suas
crenças do que aos seus atos. Sabe? Você pode chamar do que quiser e mesmo as
palavras são limitadas. Só não subjugue ninguém por que isso é colocar-se
abaixo dos seus próprios conceitos.
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