A Conclusão de um Capítulo
Quando a história escreve-se a si própria.
Mais citações de uma história nunca escrita e outras passagens.
- Conte-me
sobre os vendedores de sonhos.
- Esqueça.
- Por que?
- É querer
saber demasiado, jovem. Já não é mais data de falar sobre isso.
- Ouvi
histórias de entusiastas pela vida fácil.
- Que seja.
Todo mundo quer se livrar das dificuldades, isso não é pecado algum.
- Pois bem.
Mas andam se afirmando vendedores de sonhos e eu soube que o senhor mantinha
algumas estórias em sua memória. Eu gostaria de ouvi-las...
- Minha
memória vai mal. E falam muito por aí, veja só o que você escuta! Considere
ainda que vendedores por vendedores, deles o mundo anda cheio.
- O que quer
dizer?
- Veja bem,
há uma grande diferença entre os Fabricantes de Sonhos e estes vendedores dos
quais você me fala. E, a não ser que você tenha escutado errado, vendedor de
sonho é qualquer publicitário ou ilusionista, alguém que te estimule as
expectativas com uma oratória boa.
- De fato. Constantemente
tropeçamos nas palavras e alteramos sentidos.
- E “quem
conta um conto aumenta um ponto”. Por isso faço-me mudo.
- Seus pontos
me interessam. Por favor, eu tive alguns empecilhos em minha vinda e
transpassei-os apenas para vir ter contigo. Quero saber tudo que você puder me
dizer sobre, então, os Fabricantes de Sonhos.
- E já não
lhe interessam os vendedores? Eu poderia, talvez, lhe ensinar a produzir
fortunas apenas com a lábia e um traje chamativo... É mais fácil tornar-te ator
do que deixar-te por dentro de assuntos complexos. E eu também me divertiria
mais... Afinal, o que ganho perdendo meu tempo contigo?
- Você quer
um incentivo?
- Sim.
- Eu não
tenho nenhuma quantia significativa...
- E quem
falou em moedas? Tampouco lhe exigirei o tempo, que é como os Antigos
costumavam tratar suas negociações. Mas quero justificativas plausíveis. Se vou
revirar os sigilos e levantar os véus dos mistérios sagrados, que eu saiba pelo
quê estou me arriscando. E é bom que você seja plausível por que apenas o fato
de estar interessado nesses segredos já é o suficiente para ser alvo de
condenações e pragas do vilarejo.
- Mas nossa
conversa não sairá daqui, não é?
- A minha
discrição é notável, a delimitação desse diálogo só depende de você. Enfim, por
que você não começa a me contar sua história e desafogar essa cabeça cheia de
pensamentos inquietos?
- A primeira
vez que eu ouvi a respeito dos Fabricantes de Sonhos, e até então eu não os
conhecia por nenhum nome, eu ainda era pequeno. Na época, nos referíamos a eles
como os Outros e eu lembro de sentir
um certo medo quando falávamos deles. Meus antepassados tinham muito respeito
ao abordar o tema e suas vozes eram sempre mais veladas ao contar os causos de
pessoas conhecidas que tiveram algum contato com eles. Lembro-me que as histórias deixavam todos estupefatos e
terminavam sempre com os conhecidos se dando muito bem, mas quem contava a
história narrava este fato com uma infelicidade terrível em seu tom de voz e
isso era o que mais me perturbava.
- Muito bem.
E o que mais?
- Eu nunca
soube dos detalhes e até pouco tempo atrás essas histórias haviam me caído no
esquecimento, de forma que o tema realmente passou bastante tempo apagado de
minhas memórias, assim como aconteceu com todas as pessoas com quem tenho tido
contato. Mas houve um incidente que me despertou essas lembranças e desde então
eu ando um tanto inquieto.
- Diz-me, que
foi que lhe passou?
- Eu era
vendedor de antiguidades num vilarejo um tanto distante daqui. E sei, sou jovem
demais para lidar com antiquários, mas desde novo eu já me interessava por
histórias e personalidades do passado. Meu fascínio me levou a colecionar
objetos de diversas partes do mundo e das mais variadas épocas e foi assim que
acabei nesse ramo. Mas certo dia havia um estranho de passagem pela vizinhança
e ele me visitou em minha loja em busca de um determinado objeto o qual ele
afirmava com muita convicção que eu o possuía. Tratava-se de um relógio de
bolso que pertencera ao pai dele, mas ele não sabia me dar quaisquer detalhes
sobre o relógio ou sobre o porquê de ele achar que eu o tinha comigo. Fazia
algum tempo que eu não tinha relógios de qualquer tipo em minha loja e sempre
que me aparecia algum modelo eles não duravam muito tempo em estoque, então eu
me desculpei e disse que ele deveria estar enganado. Eu até poderia ter tido
aquele relógio um dia, mas ele já fora vendido há muito tempo.
- Pois bem,
relógios... Estamos começando a nos entender. Continue, por favor.
- Eu me
interessei pelo homem. Ele não era nada familiar, não tinha nada chamativo em
si, nem em simpatia, nem em algum destaque físico; não tinha um jeito de falar
interessante e nem cara de ter muitas histórias para contar. Mas tinha o tom de
voz que ele tinha usado comigo e que me dera uma impressão de uma sinceridade
desesperada. Eu só queria saber de onde ele havia tirado a ideia de que eu
possuía o que ele queria de volta. E, confesso, também queria saber a história
do relógio... Talvez fosse a única que ele tivesse.
- Engana-se
quando diminui os viajantes. Mas piora sua situação quando se envolve com a
curiosidade. Nosso atrevimento, afinal, nos leva a caminhos muito estranhos...
- Sim, muito
estranhos. Você sabe como termina a história?
- Faço uma
ideia do desfecho. Ele conseguiu recuperar as memórias do pai dele?
- Pois aí é
que está: o pai dele ainda era vivo, então quando ele voltou de sua empreitada
mal sucedida ele se deparou com uma figura que o tratava ternamente, mas que
ele não reconhecia. E foi nisso que as memórias foram se clareando e ele pôde
eternizar seu pai. Mas o relógio ele havia perdido.
- Isso é
bobagem. Memórias uma vez ceifadas não podem ser restituídas.
- Não foi o
que ele me disse...
- Ele não lhe
contou os fatos de forma específica. Ele não pôde reaver suas memórias, mas
pôde reconhecer seu pai e partilhar das histórias que ele lhe contou. Ele não
sabe quem foi o pai dele do momento do nascimento dele até o dia em que ele
retornou à sua casa e foi apresentado a ele novamente.
- Mas por que
apenas as memórias do pai?
- Por que era
a pessoa por quem ele mais sentia afeto.
- Mas se ele
não chegou a consumar o trato...
- Mas ele
chegou a ter contato com o Fabricante de Sonhos e voltar atrás em seu desejo é
provar indecisão. O Fabricante de Sonhos, cuja moeda é o tempo, não o perde em
vão. Os Antigos, seus Outros, não
costumam nem manifestarem-se para pessoas frívolas, mas este viajante do qual
você me diz devia ter alguma excentricidade.
- O pai
morrera dez anos antes da ocasião em que eu o conheci. Havia deixado um relógio
de herança para ele e em uma de suas viagens posteriores ele perdera o objeto.
Afirmou-me que a viagem em questão tinha sido a uma cidade próxima do vilarejo
em que minha loja estava localizada e que o relógio poderia ter passado por
minhas mãos, mas ele não soube nem me precisar a data em que isso ocorrera.
Desde então vagava em busca daqueles ponteiros que carregavam o rosto de seu
pai.
- E desde
então ele nunca mais fora o mesmo.
- O que quer
dizer com isso? Suas colocações são sempre muito vagas, eu fico perdido em suas
palavras.
- Refiro-me
ao modo como ele falava... Não era estranho? Como se ele vivesse em uma ilusão?
- Ele
gaguejava demasiadamente e falava num nervosismo fora do comum. Possuía alguns
tiques nervosos, mas nada muito alarmante. Eu não pude desconfiar como ele
poderia ser antes da morte do pai.
- Não falo da
morte do pai, falo da perda do relógio. E você sabe como são essas
particularidades que adquirimos: passamos a conviver com elas tão
costumeiramente que nos adaptamos a elas e as tornamos parte de nosso ser.
- E o sujeito
era um trauma ambulante?
- Exatamente.
Mas você tem um último pormenor que lhe aborrece demais. Qual é?
- Bem... Antes
de sair da loja o homem se virou para trás e me confessou, em uma voz severa,
que ele sonha com esse relógio todos os dias. E isso, ele ainda acrescentou, desde
que ele se encontrou com o Fabricante de Sonhos... Muito, muito antes de o pai
dele morrer.
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