Aborto
Haviam duas maneiras de resolver aquela situação: ou esperava
o trem do dia seguinte ou ia-se caminhando até o destino final. Nietzsche diz
que “de duas coisas uma é mais necessária que a outra” e eu digo que entre duas
escolhas, uma deve ser mais sensata.
De fato, o local para onde ele devia rumar era um pouco
distante daquela estação, mas seu avô o ensinara desde pequeno que tragédias só
acontecem com quem se encontra inerte e que estar em constante movimento é ter
controle do próprio destino. Em outras palavras, ele se pôs a andar pois era o
que o manteria bem consigo mesmo.
Sabia das vantagens de esperar, mas dominava o verbo com tal
maestria que chegara à conclusão de que tratava-se de um estado de espírito.
Sidarta o entenderia muito bem e aprovaria suas decisões, e foi isso que lhe
deu ânimo para começar sua caminhada.
A princípio pensou na hipótese de ir andando pelas estações,
percorrendo o caminho do trem até o horário de pegá-lo aonde quer que fosse.
Depois descartou esta possibilidade pois não queria ir pelas margens do trilho.
Já que ia se desviar da rota original, que fizesse de sua maneira: iria ter por
uma estrada de terra que conhecia haver perto dali e aproveitaria a ocasião
para verificar se uma certa encruzilhada permanecia intrigando-o. Era caminho
para seu destino e uma oportunidade para lidar com a nostalgia.
A história era antiga, mas estava vívida em sua memória.
Morava ainda com os avós e sua turma de garotos sempre esteve muito inclinada a
fazer longos passeios naquela região. Saiam cedo para uma direção qualquer e
andavam a esmo até a hora do sol se pôr. Os garotos adoravam aventurar-se pelos
terrenos, inventando brincadeiras e conhecendo novos lugares. Foi numa dessas
vezes que se depararam com a referida estrada de terra e resolveram
investigá-la.
Andaram pela trilha por bastante tempo sem avistar qualquer
passante até que depararam-se com uma encruzilhada no meio do nada. Não havia sulcos
de carroças ou marcas de passos senão as que eles próprios deixavam e eles
também não tinham a menor noção de onde aquela outra estrada à frente deles
poderia vir e para onde rumava. O grupo estava curioso, mas dividido: haviam os
que insistiam em investigar e outros que relembravam as horas, afirmando que
deveriam voltar para casa. Por fim, decidiram voltar no dia seguinte para matar
sua curiosidade.
Chegando o garoto comentou suas descobertas com seu avô que
conhecia muito bem a região, perguntando-o aonde levava aquela estrada. O avô
lhe contou que havia sim uma estrada de terra que ligava um vilarejo distante à
uma cidade próxima da casa deles, mas que não existia qualquer cruzamento de
estradas, mesmo por que aquela região era deserta. E que se houvesse alguma
cidadezinha ou fazenda para se dar o luxo de ter uma estrada que a ligasse a
algum outro município esta estrada teria que passar pela cidade em que
estávamos localizados, já que era naquela direção que se encontravam as cidades
principais.
O garoto ficou intrigado e afirmou que tinha visto o
cruzamento das estradas e perguntou se aquela estrada não poderia ser a entrada
de uma propriedade privada da região. O avô reagiu com uma gargalhada dizendo
que ninguém quer atrair atenção de passantes para suas casas, ainda mais quando
se mora tão distante de outras pessoas. Disse ao garoto que conhecia a região
bem melhor que ele e que quando moleque também explorava todos os cantos da
cidade com a turma de sua idade, exatamente como ele estava vivenciando sua
infância.
Não dormiu direito, ansioso com o dia seguinte. Havia alguma
coisa de extraordinário na descoberta que ele fizera e esperava solucionar o
que era. A manhã seguinte, no entanto, reservou-lhes chuva e no outro dia a
cidade interrompeu seus afazeres para uma comemoração qualquer, de forma que
ele teve de refrear seus planos e os ânimos dos garotos acalmaram-se. Só
voltaram às suas aventuras três dias depois já não muito empolgados com a ideia
de andarem tanto sem pista alguma para no fim descobrirem não se tratar de nada
demais. Foi com esse pensamento que resolveram encerram a busca e conservar a
magia do local em suas memórias. E o pobre garoto, contrariado, acatou a
decisão do grupo e esqueceu o local. Até então.
Não demorou muito para chegar à estrada de terra. Seus
passos eram largos e lépidos e sua curiosidade aumentava seu ritmo. Seguia pela
estrada antiga que ligava a cidade de onde vinha à um vilarejo perto de onde ia
e, sinceramente, não fazia a menor ideia de onde se encontrava a encruzilhada.
Seu destino era sua casa. Vivia sozinho no interior e
cansara de ir a pé das pequenas cidades ao redor para lá por estar sempre
atrasado para pegar o trem. Ônibus não chegavam ao seu vilarejo, eram caros e
por isso não compensavam, e aquele velho trem tinha horários muito inflexíveis,
então sempre acabava andando. A antiga estrada de terra ligava a cidade de onde
vinha à um vilarejo perto de onde ia e achou interessante tomá-la. Seus passos
eram largos e lépidos e logo estava trilhando a estrada em direção à
encruzilhada, sob a luz do luar pleno.
Aquela lua cheia lhe soava uma bela metáfora para descobrir
os véus daquele mistério que permanecera tanto tempo desacordado em sua memória
e que só agora despertara-se uivando e clamando aquela investigação. Cinco anos
depois e o rapaz não sabia quão forte era sua sede.
Andou mais de duas horas pela trilha até avistar no
horizonte uma paisagem familiar. Seu coração começou a bater mais rápido e ele
diminuiu o ritmo de seus passos aos poucos até chegar ao local. Era a
encruzilhada da qual se lembrava, mas ele não se atreveu a atravessá-la.
Sentou-se diante dela e se permitiu descansar um pouco, observando o terreno em
que se encontrava.
Depois de um tempo levantou-se. Hesitou, mas deu um passo e
estava no meio dos dois caminhos. Aí checou um rastros no chão e novamente não
havia nada: nem pegadas, nem sulcos, nada. Pensou em caminhar na outra trilha
cujo seu avô dizia ser inexistente e quase o fez, mas no último momento
decidira-se precipitado. Ele achou que não havia esperado o suficiente.
Concluiu que seus pensamentos não haviam maturado. Julgou-se um tolo e fez o
caminho de volta até a primeira estação e adormeceu esperando o trem.
Ele nunca mais acordou.
Nietzsche E Deleuze citam muito as "bifurcações", essas que aparecem no nosso caminho e quando aceitamos-nas, nos levam à outras construindo acontecimentos nos fazendo chegar a lugares desejados, ou não, mas sempre impulsionando nossos passos de maneira até insconciente e aleatória. A partir daí tudo é possível e surpreendente.
ResponderExcluirQuando houver uma bifurcação na estrada, escolha um caminho.
ps: ótimo blog, ótimo texto. Adorei (:
Adorei seu comentário! eu sou da opinião de que quando se tem uma bifurcação, na verdade tem-se 72 caminhos a serem escolhidos.
ExcluirGostei do seu blog também e aviso que serei uma presença constante! :)
Interessante! Sempre encontramos encruzilhadas na vida... Mas nem sempre temos coragem ou Vontade o suficiente para escolher... Gostei do blog...
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