Outras Passagens

mais retalhos de uma história nunca escrita.


- Pois então, posso lhe pagar com uma oração?
- Minha querida, eu não sei por onde você tem andado, mas nessa terra orações não enchem barriga.
- Mas enchem a alma, e eu vejo que você está precisando.
- Pois o propósito da oração não é o altruísmo? A dedicação ao mundo? Ore por mim sem precedentes ou meios termos! Do contrário, como poderei confiar em suas preces?
- A troca é essencial e compõe a convivência humana, mesmo a relação consigo próprio é pautada na equivalência. Há quem a perverta e atribua-lhe personalidades humanizando um processo natural, mas estes pecam por não aproveitarem as oportunidades que lhe são concedidas
- É engraçado falar de desperdício, pois apenas os dizeres vazios já ilustram o fato. Afinal, você veio até aqui para bater papo? Eu tenho compromissos latentes.
- Mas senhor, eu não tenho mais a oferecer do que eu mesma.
- Mas isso basta! Aliás, quero apenas parte do todo. Estou interessado em suas memórias...
- Minhas memórias? Quer que eu lhe conte casos? Faça resumos de minha longa trajetória de vida?
- Não, isso não dá certo comigo. Eu sou muito disperso, então não conseguiria absorver nada através de suas falas. Eu gostaria de ter contato com o material para poder apreciá-lo...
- Eu não sei se eu entendi, senhor.
- Não se preocupe. Eu venho fazendo isso há um longo tempo – há mais tempo do que você habita este plano - e tem dado certo desde sempre. Em um piscar de olhos tudo se resolve! Então sua cabeça está pronta para viver o sonho puro, sem preocupações vencidas e inoportunas.
- Alivia minha curiosidade e diz-me: memórias têm um prazo de validade?
- Não exatamente. Há quem as cultive e elas permanecem vívidas, como rosas em um jardim bem cuidado. Mas não devo me alongar nesse assunto, mesmo aqui as paredes têm ouvidos e mesmo eu tenho códigos de conduta pelos quais me pauto. O importante é lhe ressaltar que estes que vivem no passado não conseguem conceber bem o presente. E de que lhes serviriam os sonhos que fabrico se não pudessem gozar-lhes plenamente?
- E aí voltamos à natureza das trocas, assunto que já discursamos...
- É... Exatamente... Uma bela troca, não é? O que me diz? Parece-me que tomar-lhe estas memórias é um ato extremamente nobre de minha parte e muito me agrada lidar com estes passados. É um preço justo, não acha?
- Acho... Diz-me, pois, apenas mais uma coisa: e o senhor? Vive destas memórias?
- Não estamos aqui para falar de mim. Além disso, um Fabricante de Sonhos vê o tempo de uma forma distinta. Agora concentre-se no seu desejo, está bem claro em sua mente? É o que você quer, não é?
- Sim. Todos os detalhes, exatamente como lhe contei. É o que eu sempre quis e nunca pensei que se concretizaria...
- Chamamos de eterno a decisão que tomamos no último minuto. Fazemo-nos decisivos apenas para ostentar-nos, iludir nossa insegurança. Distorcemos o sempre para sempre. Mas não pense nisso! Eu sou da opinião de que quanto mais pensamos, mais infelizes somos. E isso torna caro o nosso contrato... Mas não é o que queremos, certo?
- Certo... Estou ansiosa, como há muito não me sentia!
- Muito bem! Eu só preciso que você assine nessa linha.
- E só?!
- Só. Isso basta.

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