Extraordinário
Dentro de toda ampulheta há um grão de areia negro. E se
os grãos, todos, já são negros, há nesta outra ampulheta um branco, claro como
a neve. Sobre este grão excepcional duas coisas têm de ser ditas. Começo pela
confecção do objeto que intriga a tantos.
Aquele pequeno grão do oposto não é colocado ali
propositalmente, pois não há uma finalidade ou motivo místico para a inserção
desta peça destoante e tanto trabalho gratuito é descompensado.
O mistério, portanto, está na forma como este princípio
de ironia se manifesta, pois mesmo que o artesão selecionasse cuidadosamente
cada grão de areia, após o envasamento final fatalmente o grão se revelaria.
Há quem explique o fato como um processo de seleção
natural em que o grão mais apto destaque-se dos demais adquirindo uma
tonalidade contrastante. No entanto há lacunas nesta teoria, pois a
característica saliente não é especificada, dando possibilidade ao acaso como
solução.
Há outros que acreditem na materialização simples do
grão, como se ele fosse inerente à ampulheta. Desta forma, o grão diferente não
faria parte da composição original da areia colocada ali, mas seria, portanto,
um grão extra na contagem do tempo e que parece não interferir, pelo menos
significativamente.
Outro ponto a ser esclarecido é sobre a forma como o grão
em destaque é percebido. Há muitos relatos de pessoas incapazes de verem o grão
e outros tantos de pessoas fascinadas com sua existência. Isso é explicado pela
insensibilidade visual de alguns, decorrente de seu enclausuramento mental. Em
Portas da Percepção Huxkley soluciona o aspecto do indivíduo “conformado”, mas
não a dúvida que aqui se apresenta. O dilema posto em jogo confere
personalidade ao grão: são as pessoas incapazes de enxerga-lo ou é ele quem se
esquiva dos olhares dos insensíveis? É uma postulação bastante coerente
coloca-lo como simpático a quem enxerga além, visto seu simbolismo ser
desnecessário aos demais.
Houve um rei, certa vez, que tendo descoberto o segredo
do grão destoante dedicou-se à dilatação de seus sentidos até comprovar com os
próprios olhos sua existência. Exigiu algum esforço do monarca, pois seus
vícios eram uma venda de primeira-mão e este não estava acostumado à lapidação
de sua consciência nem a constituir relações de intimidade com objetos. No
entanto, houve o dia em que o grão revelou-se ao rei e este quedou-se
maravilhado com o segredo desvendado.
Aficionado com a peça, o chefe de estado reuniu seus
alquimistas ao redor da ampulheta selecionando um grupo de pessoas que podiam
ver o grão. Os alquimistas todos já sabiam da lenda oculta, porém, algumas
outras pessoas que ocupavam cargos de confiança do rei ficaram perplexos com o
que se expunha. O rei, exaltado, ordenou que fosse extraído o grão contrastante
da ampulheta e levado até ele, pois ele queria manusear aquela preciosidade.
Os alquimistas protestaram de imediato afirmando que o
grão não podia ser extraído, pois era o contexto que o compunha e que fora dali
ele não existia. No entanto o rei, fora de seu juízo, persistiu em sua ordem e,
ignorando o aviso dos alquimistas, fez com que seus outros súditos assumissem a
tarefa manual e trouxessem-no o grão.
Após a milésima tentativa frustrada os súditos voltavam
ao rei dizendo que inexplicavelmente o grão evaporava-se quando o vidro da
ampulheta era quebrado. Incapaz de compreender a mecânica extraordinária do
objeto, o rei entrou em colapso, numa crise atordoante que durou algum tempo
até, enfim, suicidar-se. Relatos posteriores à sua morte revelavam que nos
últimos tempos o rei já não era mais capaz de ver o grão incomum da ampulheta e
que isto contribuiu para seu trágico fim.
Após este acontecimento a população passou a maldizer a
história e a lenda caiu no esquecimento sendo mantida apenas verbalmente, numa
tradição oculta daqueles que realmente se aproveitariam dela. Os lábios da
sabedoria só devem ser abertos aos ouvidos do entendimento. É assim que os
alquimistas entendem o conhecimento e esta é a proposta de ensino mais coerente
e eficaz.
Com pesar, eu reconheço ter quebrado esta regra. Mas
transpassando-a, vou além citando o axioma revelado a mim quando pude ver o
grão-de-ouro pela primeira vez. O sábio me disse:
“TODO
E CADA DIA POSSUI UM MOMENTO MÁGICO”
e rematou:
“NÃO
DEIXE-O MAIS PASSAR DESPERCEBIDO”
e eu entendi: se você se esquece dele, ele se esquece de
você.
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