Réplica


- Você se machucou?
- Não, eu estou bem. Até então...
- É uma pena... Digo, o espelho ter quebrado.
- Sim. Penso que as coisas vão piorar daqui pra frente, então um espelho quebrado é pontual para marcar o início de uma desgraça.
- É um começo... Mas acho que as grandes tragédias não devem principiar-se com a queda de espelhos, por que isso lhes tiraria o mérito. Além disso, marcos são exclusivamente voluntários, entende? Como os brindes: o estalar das taças só tem valor por que atribuímos a ele.
- Obrigada, mas você não está me animando.
- Pois bem, você acredita em acaso?
- Já acreditei.
- E o que a fez desacreditar?
- A lógica.
- Então tenho o prazer de conversar com uma desperta? Isso é bom!
- O que você quer dizer?
- Bem, a grande maioria das pessoas decide sua crença arbitrariamente, quase que irresponsáveis, e é isso o que faz de seus pensamentos meras crenças e dá à palavra o sentido denotativo que experimentamos hoje. No entanto, toda e qualquer concepção é uma crença. Até então estamos de acordo?
- Explique um pouco melhor...
- Concordamos que realidade é convenção? Que esta cena, esta conversa, existe de, pelo menos, dois pontos de vista diferente e que cada um deles é uma crença pessoal?
- Bem, sim...
- Pois então nada é verdadeiro, já que não existe uma realidade comunitária.
- De fato...
- E tudo é permitido se a crença é livre?
- Pode-se dizer que sim.
- Sim. E aí chegamos às experimentações. Essa é a melhor parte! Se eu sei que você desacredita no acaso pela lógica, então é por que acredita em causas!
- Isso. Por que não há fins sem início. E se a desgraça é um fim, o espelho é um início.
- Calma, não atropele as coisas! Veja bem, diante da ideia de causa e efeito e de inícios e fins, o que você pensaria da ideia de eternidade?
- Eternidade? Bem, dizemos que só o Senhor é eterno...
- Vamos colocar como o Maior é eterno, podemos? Pois bem, então o Maior transcende o tempo e o espaço. Eu diria que “eternidade” é uma figura de linguagem. Concordamos?
- Uma figura de linguagem? Você quer dizer que o Maior tem um fim? Seria uma blasfêmia...
- Ou poderia se referir à nossa capacidade sensorial limitada. Eu não coloquei final ou início algum, apenas insinuei que a linguagem é incapaz de descrever o sutil. As palavras têm sua utilidade, bem o sei: é uma das formas de fazer do espesso o sutil...
- A Grande Obra...
- Sim. Mas mesmo realizando-A, é impossível descrevê-la. Não é verdade?
- Eu seria incapaz de lhe dizer.
- Eu sei que sim. Por que, como dissemos, palavras não são suficientes. Mas voltemos aos marcos, agora que já não te vejo mais tão pessimista! Posso dizer que o humor de uma pessoa ou a tendência com que ela escolhe enxergar a vida altera suas decisões e o desencadeamento dos fatos?
- Definitivamente.
- Mas você concordou também quando eu disse que escolhemos nosso humor?
- Eu não havia parado para pensar nisso, mas faz sentido sim.
- Está vendo? É uma desperta! É muito bom conversar com gente assim! E você saberia me dizer o porquê de ser tão pessimista por vezes?
- Essa é uma questão pessoal?
- Não. É uma questão filosófica. E eu estou afirmando, mesmo não a conhecendo devidamente.
- Eu não sou tão pessimista assim.
- Por que não é tão observadora quanto deveria. O pessimista, como o otimista, o são por saberem observar oportunidades mais do que os demais. O que difere entre eles é a forma como vão trabalhar os fatos observados. Quando te chamo de pessimista, portanto, lhe chamo de observadora. Encare como um elogio.
- Encararei.
- Daí voltamos à questão dos marcos, lembra-se? Volto-lhe a afirmar que a existência de um marco depende da voluntariedade.
- E aí voltamos ao ponto de que cada um de nós é um universo.
- Exatamente, minha menina! Seus marcos só o são para você e não podem ser casuais, por que desfizemos a casualidade agora há pouco, não é verdade?! E seu humor é o reflexo do seu sucesso com suas escolhas.
- Escolhi mal, então. Eu sei, mas acontece que as coisas andam difíceis, e às vezes a superstição nos encontra na hora certa, não é verdade?
- É? Ou seríamos nós quem encontramos lugar para a superstição?
- Talvez eu seja muito abrupta...
- Não seja! Olha, uma vez eu conheci um moço que me contou um segredo a respeito das superstições do espelho...
- Você quer dizer a respeito dos sete anos de azar?
- Não, eu estou falando do reflexo do vidro, como eu te disse um pouco mais cedo.
- E o que tem o reflexo?
- Bem, o meu amigo diz que se na queda, ou pelo motivo que for o espelho não estiver refletindo sua face quando ele se estilhaçar, não há problema algum, não há azar.
- Mas como eu vou saber se o espelho estava refletindo o meu rosto quando ele espatifou?

- A questão é outra: você admite o azar?

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